"Viaje além de sua imaginação"

quinta-feira, 18 de março de 2010

Além do Sepulcro



Quantos dias e quantas noites haviam se passado? Eu realmente não sabia. Um sentimento desconhecido por mim brotava agora nas entranhas de meu coração, seus batimentos aos poucos aceleravam, mesmo com todo aquele peso sobre ele. O sangue que outrora circulava lentamente, agora começava a ferver, estava esquentando no ritmo de meu corpo frio. Os ossos rígidos e doloridos, "Aaah, como me fez mal todo aquele frio que senti". Eu estou confortavelmente confuso, delirando com meus próprios pensamentos, viajando em meu subconsciente.

Progressivamente a pesada realidade vinha caindo sobre minha pobre alma recém-despertada, meu corpo chumbado aos poucos estava absorvendo a líquida essência extraterrena. O preenchimento da carne humana, pela primeira vez na vida estava sentindo aquilo na pele, "Estava eu reencarnando? Finalmente voltando à prazerosa vida?".

"Será que há séculos eu tinha despertado? Que lugar era aquele? Que lugar é este, tomado pela escuridão eterna?". Me senti um ser vivo novamente, o sangue circulava, quente como o fogo; eu podia sentir meus pulmões inchando novamente, realizando seus movimentos involuntários, "Ah, o ar terreno!". Demorei um pouco para perceber que não havia muito o que inspirar ali, não sei se foram segundos, minutos, horas, dias ou anos. Fui tomado por uma sensação de pânico quando passei os dedos pela superfície lisa acima de mim, eu estava vivo, porém preso, cercado pela escuridão claustrofóbica, não havia espaço algum para movimentar-me. "Que diabos de lugar é este!". Acima de mim, ouvi uns sons distantes, abafados.

- Não! Meu pobre Paul! Por quê!? Por quê!?

"Paul? Eu sou o Paul!". Me debati como um louco dentro daquele compartimento limitado, gritei o mais alto que pude, implorando por ajuda; esforço inútil. Não pude mais ouvir os prantos do povo lá de cima, tinham ido embora.

Minha alma voltara em hora errada. Em um tempo indefinido, apodreci ali, a 7 palmos abaixo da grama verde e vívida que pairava lá no mundo de cima.

"Hora de voltar de onde vim"

terça-feira, 16 de março de 2010

A Breve História de Keith Gallagan


Eu andava olhando para o chão sujo das ruas de Nova York, reparando em cada embalagem de bombom, em cada cesta de lixo, em cada saco plástico. Naquele dia eu estava decidido em fazer o que tanto queria, carregava comigo o instrumento de trabalho, escondido no casaco. O beco escuro, agora na minha frente, simbolizava o local certo, era a entrada dos fundos de um dos clubes noturnos famosos do bairro. Tentei abrir a porta de ferro, mas estava trancada, como suspeitei. Tirei a enorme arma que eu carregava de dentro do casaco e atirei na fechadura, chutei a porta para arrombá-la.


Entrando no local, era possível ouvir o som abafado da música eletrônica que tocava no palco distante, a fumaça do gelo seco que preenchia os fundos do clube embaçava minha visão e tornava difícil a respiração. Dois seguranças se aproximavam de mim, os vultos largos e altos.

- Ei! O que pensa que está...

Ele foi silenciado com um tiro de minha escopeta, agora voava para longe. O outro agarrou a arma com as mãos, acabou perdendo-as após um disparo, enquanto gritava de dor, me aproximei e lhe dei um chute na face.

Segui até a cortina, que levava ao palco onde a dançarina realizava sua Pole Dance.
Peguei o molotov que havia preparado em casa e joguei na platéia, todos corriam assustados, alguns rolavam no chão em chamas. Em seguida atirei para todos os lados, até gastar todas as balas que comprei, o sangue pintava as paredes de vermelho, a dançarina agora estava olhando fixo para baixo, no chão, nunca mais iria voltar a dançar. “Todos aqueles porcos mereciam aquilo, a morte era pouco para eles”.

Saí do local, novamente pela porta dos fundos, corri em direção à rua cinzenta e voltei para casa, andando pelos becos escuros para que a polícia não me encontrasse. Chegando a meu quarto, me joguei na cama e desmaiei devido ao cansaço.


Acordei olhando para o despertador, que agora fazia um barulho estridente, o derrubei no chão para calá-lo. Ao me levantar, tirei o casaco e fui ao banheiro, não podia me atrasar para o trabalho, aquele banho era um dos poucos momentos relaxantes que eu tinha, naquele dia parecia ainda mais prazeroso.

Eu trabalho em uma das maiores empresas de Nova York, para mim dinheiro nunca foi problema, tinha uma coleção de carros em minha mansão. Na garagem escolhi o carro que mais se adaptava ao meu humor naquele dia, uma Ferrari preta. Na rua todos olhavam para meu veículo, pessoas boquiabertas com os olhos arregalados, isso me enchia de satisfação.

Na empresa todos me cumprimentavam, as mulheres me mostravam um sorriso sedutor, sempre tive uma tara por uma delas, a única que não me dava atenção, porém naquele dia maravilhoso tudo parecia diferente, as coisas mudaram para melhor. Ellen, a tão cobiçada mulher agora vinha em minha direção com seu olhar sexy, o sorriso perfeito no rosto.

- E então garotão, está livre hoje à noite? - Disse ela.

- O quê? O que te levou a mudar de atitude assim tão de repente hein senhorita?

- Ligue para mim quando sair do trabalho, estarei no restaurante Sacré Coeur.
Satisfeita em ter me deixado abobalhado, ela foi embora para seu escritório, o lindo e longo cabelo negro e brilhante balançando suavemente, deixando seu perfume no ar, eu fitava o seu belo traseiro. “Hoje eu acordei com o pé direito” pensei.

- Ei Keith! Hoje à noite vamos ao clube não é? - Perguntou um de meus colegas de trabalho, me despertando dos devaneios.

- Ah cara, desculpa, mas não vou poder ir, sabe como é, agenda lotada, obrigado pelo convite - sorri.

A tão esperada noite havia chegado, meu coração batia cada vez mais forte, minhas mãos tremiam de hesitação, foi difícil abrir a porta do carro, nunca pensei que um dia seria trabalhoso colocar uma chave em sua devida fechadura.

Fui até a linda rua iluminada pelas luzes coloridas dos restaurantes, era um verdadeiro pólo gastronômico aquele lugar, os estacionamentos estavam todos lotados, tive que estacionar umas duas ruas depois, em um estacionamento privado. Estava com pena de sujar os meus sapatos novos, andei olhando para o chão, passando longe de qualquer poça de água.

Uma rua antes do restaurante, a polícia abordava um homem, com as armas apontadas para ele, o criminoso carregava uma escopeta, nunca imaginei que aquele bairro nobre e movimentado fosse tão perigoso.

O letreiro luminoso esverdeado do Sacré Coeur brilhava incessantemente sobre minha cabeça, era um lugar realmente lindo, combinava perfeitamente com Ellen e com todas as mulheres lindas que estavam ali. A avistei sentada numa mesa perto de uma pintura famosa, caminhei até lá.

- Olá, desculpe se atrasei alguns minutos.

- Tudo bem Keith, eu acabei de chegar também - disse ela, sorrindo para mim. Como era reconfortante aquele sorriso.

- Sabe você me parece menos bruto fora da empresa.

Aquela frase me deixou completamente sem jeito.

- Ah, e- eu tenho que adotar o jeito de ser de um bom chefe... Não posso pegar leve com os funcionários. Parece meio chato, mas é assim que tem que ser.

- Admiro isso em você.

- Escuta, sem querer ser chato, mas você nunca me deu atenção e agora se mostra uma admiradora minha, estou estranhando isso.

Antes que ela falasse algo, fomos interrompidos pelo garçom que perguntava o que iríamos querer como prato de entrada.

- A salada da casa, por favor - pedi.

- O mesmo para mim - disse Ellen.

A noite se seguiu à base de muito vinho e comida, acho que eu já tinha bebido bastante, estava começando a ficar tonto, as palavras de Ellen demoravam alguns segundos a mais para entrar em meus ouvidos. Comecei a soltar uma série de elogios a ela, inclusive disse que ela tinha uma bunda perfeita, Ellen não se chateou, pareceu ter gostado, apenas sorria, me deixava falando feito um idiota.

Quando ela me ajudou a pagar a conta no fim da noite, caminhamos até a entrada brilhante e florida do restaurante. Ela estava deslumbrante com aquele vestido vermelho, combinado com o batom em seus lábios, aquela boca sexy e irresistível.

Encaramos-nos por um bom tempo, sem dizer nada um para o outro. Nossos corpos se aproximaram lentamente, aqueles lábios agora seriam meus, iria sentir o sabor da mulher que desejei ter há tanto tempo, nossos rostos estavam a uns poucos centímetros um do outro, meus lábios en...

Acordei apavorado, uma explosão parecia ter acontecido na sala, pude ouvir vários passos lá, pessoas resmungando coisas, será que estavam tentando me roubar?

Olhei para mim mesmo no espelho que ficava de frente à cama, estava com aquele casaco velho, minha cara estava horrível, “Meu Deus” falei para mim. Um grupo de policiais uniformizados agora brandia suas armas em minha direção.

- Senhor Keith Gallagan, o senhor está preso acusado de assassinato em massa!

O perfume de Ellen, o dia e a noite perfeita, apenas devaneios de um assassino. Keith Gallagan, o caixa de supermercado que vivia sozinho em uma pequena casa, havia gastado todo o dinheiro que possuía com armas e munições, para se vingar daqueles que o humilharam.


“Ah, a velha e chata realidade...”

Tique Taque

A jovem moça dormia agoniada com o chato ruído do relógio da cozinha, o tique taque de todo santo dia. Rolava para a direita, em seguida para a esquerda, à procura de uma boa posição, mas nenhuma parecia boa o bastante. Suava, o ventilador não estava ventilando o suficiente para livrá-la do calor infernal de seu quarto. Ela cravava as unhas com força no colchão na esperança de que aquilo a livrasse daquele turbilhão de sensações ruins. O relógio de parede sempre no seu tique taque rítmico. A moça queria ir até lá e quebrar o objeto, mas ela sabia que aquilo apenas iria prejudicá-la.

Já estava exausta, a moça teve seu momento de paz, seus pensamentos se esvaíam aos poucos, o tique taque do relógio agora ficava cada vez mais distante. A jovem adormeceu.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, a mulher foi até a cozinha ter sua vingança, iria quebrar aquele troço, fazê-lo em pedaços, mas ao encarar seu inimigo ela percebeu que havia algo de errado, ele estava parado, na hora doze. Notou que estava se sentindo um pouco estranha, parecia mais leve do que já era. Virou-se para trás e viu algo que a deixou preocupada, seu remédio para o coração estava ali em cima do balcão, ela tinha esquecido de tomar no dia anterior.

Recordou que tinha chegado em casa cansada e se jogado na cama de seu quarto, havia cochilado e acordado no meio da noite, agoniada, desesperada e se rebatendo na cama.

Achou estranho que agora estivesse bem, sem nenhuma seqüela da crise do dia anterior. Voltou para o quarto, deitar na cama ajudaria ela a pensar melhor.

A jovem moça agora via a si mesma deitada na cama, pálida como seu lençol branco, a boca aberta e os olhos revirados. O relógio não mais tique taqueava.



quarta-feira, 10 de março de 2010

O Cão e a Cruz (Parte Final)

A cada semana a besta fazia novas vítimas e a população estava cada vez mais furiosa. Dona Joana já havia sido levada, em uma das noites, somente partes de seu corpo foram encontradas jogadas pela cidade, grande parte da rua das Alamedas foi tingida de vermelho. Ciro, irmão de Ronaldo, disse ter visto uma silhueta canina próxima à capela, ao ter olhado pelas frestas da janela, em uma noite de sexta-feira.

Em uma tarde de segunda, Ronaldo tinha resolvido procurar César, um grande conhecedor das lendas locais, também um contador de histórias, parece que sabia de muitas coisas a cerca dos lobos humanóides. O padre estava de frente à uma casa amarela, com os olhos semi cerrados devido ao calor, na frente do casebre, um senhor balançava-se para frente e para trás em sua cadeira de balanço, fumando cachimbo.

- Com licença, é aqui que mora o César? - Perguntou Ronaldo.

- O César? Sou eu - disse o velhote, tossindo. Ele tinha uma cara murcha e larga, o narigão enrugado se destacava em sua face de pele escura.

- Boa tarde senhor, eu sou Ronaldo, o padre da capela de São Miguel - disse estendendo a mão para que o velho a apertasse. Após o aperto de mão, César olhou atentamente nos olhos do padre.

- Eu conheço você, já assisti a uma missa sua, prega bem a palavra do Senhor.

- Obrigado.

- A cidade pensa que tu és a besta, está sabendo não é? Olham feio pra ti.

- Claro, mas o Senhor me protege de todos os males. Foi justamente por isso que vim te procurar, para saber mais sobre a besta.

- Ah, meu caro, posso lhe dizer bastante coisa, meu pai já encontrou um lobisomem quando era jovem, teve sorte de escapar com vida, ele passou a vida pesquisando sobre esta maldição, me passou tudo o que podia.

- Conte-me.

- Sente aí nesta cadeira - o velho aguardou um momento, esperando o padre se acomodar na outra cadeira de balanço. - Bem, vamos começar sobre como se deve deter a besta, uma das maneiras é colocando cera de vela usada em três missas de domingo, essa você já deve saber.

- Sei sim. Na verdade eu não quero matar a besta sabe, apenas quero me proteger.

- Entendo, realmente não cairia bem para um padre matar alguém. A maldição do Kumacanga ou lobisomem, faz com que a pessoa sinta um grande desejo de comer carne, comida salgada e traz uma sede incontrolável, a criatura precisa se alimentar de sangue para viver, se encarrega de obtê-lo quando está transformado. Diz a lenda que quando uma mulher tem sete filhos homens, o sétimo será um lobisomem, ou então quando a mulher se amanceba com um padre. A maldição se desenvolve quando a criança completa treze anos de idade.

Ele apenas havia confirmado o que já sabia, “treze anos de idade”, era horrível saber daquilo, sentia o olhar canino quando fechava os olhos, era aterrorizante, aquilo o atormentava há alguns anos. Sete filhos, a carne, o sangue, o padre, tudo agora estava confirmado, a lenda não era apenas uma lenda, de fato existia e estava mais perto de Ronaldo do que qualquer um poderia imaginar.

- Já ouvi o suficiente, vou embora, muito obrigado César - disse Ronaldo levantando-se.

O velho não disse nada, apenas ficou olhando para o padre fixamente, franzindo seu cenho, a fumaça do cachimbo cobrindo-lhe a face.

A sexta-feira havia chegado novamente, a maldita sexta. O povo da cidade estava decidido dessa vez, em invadir a igreja, para pegar Ronaldo no flagra, para acharem a besta. Perto do anoitecer, os cidadãos brandiam suas tochas, pás e enxadas rumo à capela, gritavam indignados, “Isto vai ter um fim esta noite!”,” A besta não irá mais nos perturbar!”,”Não haverá vítimas em nossa cidade esta noite!”. Chegando na porta da capela, o mutirão arrombou o portão e adentrou no local, o altar alaranjado pela luz das tochas, o silêncio reinava ali, mesmo com o grito de todas aquelas pessoas, era um cenário sombrio, todos haviam se calado, agora vasculhavam o lugar em busca de Ronaldo.

Ao chegarem no quartinho em que dormiam os irmãos, encontraram apenas José, pálido e ofegando em sua cama, estava muito assustado com a invasão repentina daquelas pessoas na casa do Senhor.

- José! Por Deus, onde está o seu irmão?

- Eu não sei.

- Ora, não precisa mentir, estamos aqui para o seu bem, para te salvar das garras da besta, diga para nós.

- Estou falando a verdade! Não sei!

Todos os que estavam no quarto olhavam um para o outro, incrédulos, iluminados somente por suas tochas. Na visão de José os rostos de todos demonstravam que estavam sedentos por sangue, o ódio pela besta havia contaminado todas aquelas pessoas com um instinto assassino.

- Vamos embora, ele não está aqui, pobrezinho do irmão dele, abandonado neste quartinho escuro... Venha conosco garoto.

- Não, eu não quero. Aqui estou mais seguro, na casa do Senhor.

- Que seja. Hoje iremos achar a fera, custe o que custar - as pessoas agora evacuavam a igreja.

Nas ruas desertas da cidade, podia-se ouvir apenas o vento e os passos das pessoas revoltadas que vagavam pela cidade em busca do lobisomem. Durante a caminhada, um dos homens disse ter visto uma silhueta correndo para o matagal, logo os caçadores adiantaram-se, aquela era a chance de ouro. Eles se separaram prontos para armar uma armadilha para a besta, cercariam o bicho em um círculo, o deixaria sem saída.

Não tardou para que encontrassem o homem lobo, agora a criatura rosnava para os homens armados que o flanqueava, sentia-se ameaçado, de fato estava muito encrencado. A saliva deslizava por sua enorme boca canina, repleta de dentes afiados; os pêlos escuros eram escassos em algumas regiões do corpo e também era mal distribuído; as orelhas pontudas lembravam chifres e os olhos amarelados eram intimidadores. O monstro estava sedento por sangue e carne humana, seus instintos o dominaram, o cão agora pulava em cima de um dos caçadores com extrema rapidez, o homem nada pôde fazer, estava sendo devorado, o sangue jorrava por todos os lados, tornando as plantas antes azuladas com a luz do luar, vermelhas, um vermelho escuro e denso; logo os gritos do homem cessaram, quando a besta o mordeu na jugular. Os outros que observavam a cena chocados, agora não viam outra solução senão atirar no bicho e assim fizeram. O lobisomem fora fuzilado, perfurado pelas balas sagradas, untadas com as velas da Igreja de São Miguel, em pouco tempo caiu duro na grama, os olhos perdendo a cor amarelada, a língua pendendo para fora da boca, a besta foi abatida.

Ronaldo notando a confusão que vinha lá de cima, saiu de seu esconderijo, que ficava próximo à sua cama, um pequeno porão que havia feito para se proteger da besta na noite. Reunindo toda a sua coragem, levantou o alçapão lentamente, olhando para todo o ambiente, seu irmão havia sumido. Foi andando até a cozinha, do lado de fora era possível ouvir gritos, mas não eram gritos de horror e sim de comemoração. Chegando na praça da cidade, encontrou os cidadãos reunidos ao redor de um poste, em que no alto uma criatura lupina pendia, balançando de um lado para o outro, presa com uma corda grossa no pescoço, o sangue da besta ainda escorria por seu corpo, pingando e criando uma poça de sangue abaixo dela.

O padre foi tomado por uma sensação horrível, caiu de joelhos e começou a chorar, isto fez com que todos se calassem e olhassem para trás. Ao verem Ronaldo ficaram perplexos, pensavam que ele era a fera, mas se ele estava ali ajoelhado, quem era a maldita criatura? Só o amanhecer os daria a resposta.

Todos foram para suas casas, alguns tentavam consolar Ronaldo, mesmo não sabendo o motivo porque tanto chorava, devia estar feliz pelo fim da besta. O padre ficou ali, olhando para a pobre figura do monstro, pendendo tristemente no poste, durante toda a madrugada.

Quando os raios de sol começavam a surgir no horizonte, a figura de José, o sétimo filho de Dona Chica, filho do antigo padre da cidade, aparecia onde outrora estava a besta. O querido e frágil irmão de Ronaldo havia completado treze anos naquele dia.



FIM.

O Cão e a Cruz

Dona Chica teve sete filhos, o sétimo havia sido com um padre de uma pequena cidade no norte do Pará, onde atualmente residia, deitada em seu caixão, na sua simples cova. A cruz de madeira com seu nome, fincada sobre o túmulo, balançava quando o vento forte batia, mas nunca caía, assim como a velha fora em vida.

O pai da sétima criança fugiu para outro estado quando o menino mais velho atingiu a maioridade. No dia em que foi embora, o homem parecia assustado, não tinha se despedido do filho, o sétimo de Dona Chica, nem dos outros que ela tivera com os outros homens de sua vida. O padre deixou sua igreja, a pequena e simples capela branca, para os meninos da família, um deles havia assumido o sacerdócio

Sem ter mais pai algum, a mãe, Francisca, teria de cuidar das sete crianças sozinha, eram sete meninos. Quando Ronaldo, filho de Francisca, virou o padre da igreja do vilarejo, ele passou a morar na capela, junto com seu irmão José, que precisava de bastantes cuidados, pois tinha a saúde frágil, era pálido e magricela.

Em uma noite de sexta-feira, enquanto fazia o prato que seus filhos mais gostavam, o Tacacá, uma sopa amarelada com goma e camarão, Dona Chica foi abatida por um mal estar repentino e em seguida atacada por alguma coisa que lembrava um cão, não teve tempo de reconhecer, quando menos percebeu, já tinha passado desta pra melhor. A partir desse dia, surgiram rumores de que uma fera sempre era avistada correndo durante as madrugadas de sexta-feira, atacando os desprevenidos. Muitos diziam que um lobisomem tinha chegado à cidade e se instalado por lá. Todas as sextas, alguns caçadores saíam à procura da besta para matá-la.

Após a longa missa da tarde de Domingo, Ronaldo estava com uma vontade imensa de comer carne, de preferência mal passada, sua preferida; foi até a cozinha para prepará-la, para ele e para seu irmão José. O calor estava insuportável, nas ruas a areia alaranjada era levada pelo vento, formando verdadeiras nuvens arenosas, que invadiam as casas alheias, o que incluía a capela também. Ronaldo sabia que após o almoço teria de cumprir sua rotina limpando a entrada da igreja, pondo a areia para fora.

Bem alimentado, tratou de conversar com seu irmão, que passava o dia de cama, José adorava ouvir as histórias de Ronaldo e também a palavra do Senhor, se sentia a pessoa mais feliz do mundo quando o irmão o vinha visitar no quartinho atrás da capela, onde os dois dormiam. Após conversar com José, o padre ia para o velho e pequeno confessionário de madeira, atender os fiéis. Todos os dias Ronaldo ouvia confissões absurdas, imaginando se realmente servia de alguma coisa para estes cidadãos ouvir a palavra de Deus, mas ele sabia que não devia questionar os poderes da fé e assim seguia com seu trabalho sempre bem executado: “reze dez ave marias e quinze pai nossos”.

Saindo do confessionário, o suor escorrendo por seu rosto, Ronaldo escuta alguém o chamando, ao se virar vê que era uma das fiéis mais fervorosas da igreja, uma colega querida dele.

- Dona Joana! O que fazes aqui? Ainda falta muito para a missa das seis.

- Ah, nada padre, só vim conversar com o senhor.

- O que me contas?

- O senhor sabe que nos últimos tempos a fera tem atacado com mais frequência? Estou com medo Ronaldo.

- Não há o que temer minha amiga, o poder do senhor protege quem segue a palavra. Sente-se vou trazer um copo d’água para a senhora, deve estar seca de tanta sede.

Enquanto tirava a garrafa da geladeira e apanhava o copo, Ronaldo refletia sobre o que Joana havia dito, “a fera tem atacado com mais frequência”, na verdade ele tinha muito medo da besta, mais do que qualquer um daquela cidade, tinha certeza, tremia quando lhe falavam da criatura, mas tentava sempre demonstrar firmeza e coragem e até agora tinha conseguido, todos ficavam contentes em estar perto dele, se sentiam seguros. A água agora transbordava do copo de vidro, Ronaldo resmungava.

Levando a água para a mulher, ele foi surpreendido por uma pergunta.

- Padre, não pude deixar de notar esses rasgos em sua roupa, o que foi isso?

A mão de Ronaldo fraquejou e agora o copo havia se transformado em estilhaços quando caiu no chão.

- Oh meu deus! - Exclamou a mulher.

- Não se preocupe Dona Joana! Não se preocupe! - Falava Ronaldo rapidamente, enquanto já catava os restos do copo - Eu só estava desatento, não use o nome do Senhor em vão.

- Desculpe padre, força do hábito.

- Sim, a pergunta que fez pra mim. Foi apenas um acidente de ontem, eu estava passando pela porta quando minha blusa ficou presa em um pedaço de madeira solta e acabou rasgando.

- Ah, acontece né?

- Vou na cozinha pegar a água da senhora - avisou, com os cacos de vidro agora em sua mão.

- Não senhor, não precisa, já estou indo, não se incomode. Vou para casa agora, tenho que preparar o café e depois me arrumar para a missa.

- Certo senhorita, te vejo mais tarde.

- Até.

Assim Dona Joana saía da capela, questionando acerca do comportamento estranho de Ronaldo, que não só tinha derrubado o copo como havia ficado da cor das paredes da igreja.

O padre agora respirava aliviado depois de a mulher ter ido embora, por pouco havia se safado de contar o verdadeiro motivo daquele rasgo, teve sorte por não estar com suas outras camisas que estavam em pior estado. A noite estava chegando, e com ela o compromisso inadiável de Ronaldo, foi ao seu quarto trocar de roupa, aproveitando para conversar novamente com o irmão.

Os outros irmãos de Ronaldo haviam crescido com os cuidados dos vizinhos, após a morte da mãe. Eles vinham sempre frequentar as missas do querido irmão ou então tomar um café com ele e José no fim da tarde. Apesar das dificuldades que passaram, todos eles eram muito unidos e dotados de uma personalidade bondosa.

Ronaldo tinha celebrado a missa com excelência, sua satisfação em ajudar as pessoas o fazia uma pessoa realizada, mesmo com suas preocupações, fardo que acompanha os seres mortais. Agora ele cumprimentava os fiéis e os irmãos, José também assistia as missas quando podia.

- Ronaldo meu amigo! Como está a vida? - Perguntava o prefeito da cidade.

- Está ótima Carlos, obrigado - respondeu Ronaldo, o prefeito agora dava tapinhas no ombro do padre enquanto ia cumprimentar os outros.

- Meu grande irmão! - Cumprimentou um dos membros da família.

- Rafael! - O padre abraçava o irmão.

- Quando vai voltar a fazer missas nas sextas hein? - Perguntava Rafael.

- Tu sabes que é um dia perigoso não é? As pessoas não estão mais saindo de casa com medo da besta e eu não gostaria de imaginar aquela fera entrando na igreja em plena missa. Estou me protegendo como posso, a mim e a todos.

- Espero que peguem logo esse lobisomem, ele matou nossa mãe, é o que mais desejo, a morte do bicho, estou tentando ajudar os caçadores a pegá-lo nas noites de sexta.

Ronaldo suava frio após ter escutado o irmão dizendo “é o que mais desejo, a morte do bicho”, pegou um lenço e rapidamente limpou a face.

- Irmão, tu não deves desejar a morte dos outros, nas sextas ele pode ser um bicho, mas nos outros dias é humano, como todos nós - advertiu o padre.

- Desculpe irmão, sou apenas um simples pecador.

- É uma pessoa de ótimo coração também, pecadores todos nós somos.

Às oito da noite todos saíam da igreja e o padre arrumava o altar, retirando o que devia ser limpo e varrendo-a. Antes de dormir, pedia ao pai que zelasse pela saúde de José e pela segurança de todos da pequena cidade, que os livrasse da besta.

Todas as noites de sexta-feira, Ronaldo sumia, ninguém da cidade sabia onde ele estava, aqueles que tinham coragem de sair naquele momento, geralmente mendigos ou pessoas sem teto que vagavam sem rumo pela cidade, podiam ouvir choros vindo da casinha atrás da capela, provavelmente era o irmão do padre, que se sentia solitário ali sozinho na noite obscura.

Após notarem que Ronaldo não estava na cidade nas sextas, o povo passou a desconfiar dele, “quem diria, o padre, justamente o padre da nossa cidade suspeito de ser a besta” comentavam os habitantes indignados. Os caçadores vasculhavam o matagal que cercava a cidade na noite escura em busca de pistas ou da própria fera, todos eles armados até os dentes.

De três em três domingos, eles pediam a Ronaldo que lhes deixassem pegar a cera das velas que foram utilizadas somente nas missas de domingo, segundo a lenda, o lobisomem só poderia ser morto com bala untada com cera que queimou em três missas de domingo ou em Missa-do-Galo. Agora, suspeitando que Ronaldo era a fera, os caçadores olhavam de um jeito estranho para ele e o padre sentia isso, havia medo e receio nos olhos deles.


Continua...

Boa Noite Vovó!

Em meu quarto escuro, banhado pela luz do luar, eu dormia muito bem após um ótimo dia, até ser acordado no momento em que beijaria a mulher da minha vida, "Que o maldito que me acordou seja amaldiçoado sete vezes!" pensei furioso. A porta rangia, um som agudo e irritante, virei o rosto para lá, forçando a vista, uma silhueta muito conhecida estava parada ali. Aos poucos fui reconhecendo cada detalhe do que estava acontecendo: uma bengala, uma faca, pantufas...

- Vovó? - A maldita não me respondia, mas eu tinha certeza que era ela, embora seus olhos outrora verdes estivessem sem cor e sua pele mais pálida do que de costume (uma tarefa muito difícil para alguém que usa 10 quilos de maquiagem no rosto).

A velha gritou enquanto corria em minha direção, o mais rápido que pôde, com sua bengala, fazendo um barulho engraçado, como se um anão usando um sapato de madeira corresse pelo quarto; a faca estava pronta para desferir o golpe. Desviei da facada por muito pouco, subestimei a vovó. Durante o ato o braço dela tinha estalado e o punhal havia caído no chão. " Vovó! Pirou de vez!?", ela me respondia com grunhidos indecifráveis, resmungos de uma velhota, agora tentava me acertar com a bengala, a cada tentativa se desequilibrava e se apoiava no primeiro suporte que via pela frente. Me vi obrigado a reagir, soquei o queixo da vovó, sua dentadura voou e caiu dentro do meu aquário; ela revidava com algo inesperado, seus seios que quase batiam no chão agora vinham como um chicote de encontro a meu rosto, me atingiram em cheio e fui abatido, tive sorte por aquele troço não produzir mais leite. Rapidamente afundei meu punho no estômago da velha, me arrependi, pois tomei um banho de vômito. Vovó ao se curvar, dera um jeito na coluna.

- Dor na coluna vovó? - Perguntei sarcasticamente - Deixe-me dar um jeito!

A segurei pela banha e pelo vestido e a joguei de encontro a janela. A anciã agora caía do segundo andar da casa e se estatelava no asfalto.

Não sei o que havia dado na vovó, mas boa coisa não era.

Que Deus lhe Pague

Um fim. Enfim, a última palavra que eu pude ouvir fora:não; uma negação. Fui daquela para melhor com um sentimento de frustação, morto pela vítima, destinado ao inferno do cão. Abri os olhos da alma, observando com calma toda aquela serenidade atípica, a alva cor que se espalhava por todo o cenário. Eram nuvens? Era um sonho? Um homem velho e barbudo me chamava. "Meu caro, o que tu fazes aqui?", velho idiota, se ele não sabia, como eu saberia? Me mandou entrar pelo portão dourado entre a parede branca. Andando pelo vazio sereno eis que escuto uma voz, vinha de todos os cantos, "Péricles, não foi um bom filho, não posso deixá-lo ficar". Todo o branco avermelhou-se, estava quente como o inferno, "ah não, era realmente a casa do cão", os diabinhos vinham até mim sorrindo e lambendo os beiços. Cada um agarrava uma parte de meu corpo e com uma facilidade tremenda as mutilava; braços, pernas, tronco e cabeça, os monstrinhos se divertiam a beça...

Acordei daquele pesadelo horrível, fiquei sentado na cama, enxugando o suor em minha testa. Não estava me fazendo bem matar jovens toda semana, já não bastava a polícia sempre me torrando o saco, como eu iria realizar os desejos de mamãe assim?

Me levantei e fui lavar o rosto, acabei vomitando na pia, não estava nada bem de saúde. Vesti meu casaco, pus o facão no bolso interno e saí para a rua fria. Perto da avenida, uma velha tentava atravessar a pista, de repente desequilibrou-se e eu fui movido por algo que não pude explicar, sem pensar duas vezes, fui ajudá-la. Ao me aproximar, a levantei e a coloquei na calçada, ela me agradeceu sorrindo. Foi uma sensação boa para mim, lembrava o sorriso de minha mãe.

- Não! - exclamou a velha com os olhos arregalados.

A velhinha tomou um banho de sangue quando fui levado pelo caminhão em alta velocidade, aquela expressão horrorizada na face dela foi a última coisa que vi em vida.

"Está quente aqui", eis o preço que pago por uma boa ação.