"Viaje além de sua imaginação"

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Aracnídea

Nunca gostei de mudanças, aquela já era a terceira em minha vida (que me recordo), curta vida devo dizer, tinha acabado de fazer 10 anos. Os pais sempre dizem que iremos para um lugar melhor, mais bem localizado ou maior... Como todos sabem, sempre há uma quebra de expectativa quanto a isso.

Naquela vez eu sentia algo diferente em relação à casa para qual estávamos indo na tarde absurdamente calma daquele dia. No carro, eu adorava olhar a paisagem pela janela, todas aquelas árvores secas devido ao Outono passando rapidamente, as milhares de folhas pardas acompanhando a dança do vento. Durante todo o caminho para o novo lugar eu não estava em meu corpo, minha mente viajava juntos com as folhas. Quando voltei à realidade, finalmente havíamos chegado.

Assim que o ronco do motor do automóvel cessou, pude ouvir claramente cada folha seca que ia de encontro à carcaça do carro. Todos saíram do veículo, eu fui por último, como de costume em todas as mudanças. Achei estranho a maneira que encontrei eles assim que saí, estavam todos parados, olhando para o casarão a frente deles. Eu não podia negar que realmente era enorme, "grande e assustadora" pensei.

Parecia uma típica casa de filme de terror americano dos anos 80, com um balanço de madeira que ia e vinha num ritmo pertubador, aquele barulho de correntes enferrujadas que parecia friamente cronometrado, a cada dois segundos o mesmo ruído se repetia. As folhas secas cobriam a escada de madeira que levava à porta de entrada, aquela sinistra porta escura, não estava podre nem úmida, mas parecia estar. O casarão era todo feito de madeira, a parede branca da fachada era ofuscada por uma sombra densa que com certeza dava um frio na espinha de qualquer um que passasse por ali.

Não me admiro que um imóvel imenso daquele tivesse sido vendido por um preço tão baixo aos meus pais, ninguém queria ou sequer pensava em morar ali. Bem, eu fui um dos sortudos que iriam conhecer aquela coisa, as expectativas não eram nada boas.

Todos caminharam em direção à entrada da casa, eu e meu irmão fazíamos isso com certa relutância. Vi minha mãe tirando as chaves do bolso, elas eram grandes e rústicas, assim como a maçaneta e a fechadura da porta, a primeira lembrava o rosto de uma gárgula, nada animador.

Tínhamos entrado na casa. O hall de entrada ainda estava meio enpoeirado, parecia que aquele lugar acumulava teias de aranha muito facilmente, já que o antigo dono do local havia feito uma limpeza geral antes de ir embora.

- Mãe, tem certeza que esse lugar não é assombrado? - disse eu, depois de tanto tempo contendo essa pergunta.

- Assombrado? Claro que não filho! O dono não falou nada a respeito disso. Tenho certeza de que vocês vão gostar bastante daqui.

Infelizmente ela não estava certa, nem a criança mais cética do mundo se divertiria em um lugar como aquele. Os adultos como naturalmente são céticos após conviver tantos anos com a realidade e os duros esforços em manter a família, não se intimidaram com aquele local, ao menos meus pais não.

- Seu tio Les vai vir para cá passar uma noite conosco amanhã - disse meu pai, olhando diretamente para mim.

Meu irmão já estava bisbilhotando os antigos móveis da casa que foram comprados juntos com a mesma. Havia um tapete bizarro no meio do hall da entrada, de muito mal gosto devo dizer: milhares de pessoas olhavam em direção a algo inexistente naquela tapeçaria, algumas delas com deformidades que só poderiam ser notadas se observadas por um bom tempo, havia um velho que parecia estar dormindo, se não fosse pelo lençol manchado de sangue em qual estava deitado, difícil de ser notado se não fosse olhado com atenção.

Quando parei de olhar aquela obra de arte macabra, percebi que estava sozinho naquele hall, rapidamente corri para onde as vozes dos meus pais estavam ecoando. A cada segundo que passava naquela sala gigante, maior era o calafrio que eu sentia.

- Filho! - exclamou minha mãe após me ver entrando na cozinha correndo - Vamos lá em cima olhar o seu quarto novo?

- Certo - certamente não havia entusiasmo algum em minha voz.

Ao chegarmos no quarto percebi que eu e meu irmão teríamos noites de insônia, era bastante obscuro, mesmo que abrissemos as cortinas ao máximo, pouca iluminação entraria ali, nossas camas já estavam lá, eram antigas como os outros móveis da casa, ambas cobertas com um cortinado, aquele cheiro de mofo permamente não saíria de lá mesmo que aquilo fosse lavado milhares de vezes. Mesmo com minha mãe do meu lado, a sensação de que havia alguém atrás de mim apenas aumentava.

- Mãe, estou com fome - qualquer desculpa para sair dali seria válida.

- Certo, vamos lá embaixo, seu pai está preparando uns sanduíches.

Aquele momento em família me fez esquecer por algumas instantes o quão ruim era saber que iria passar dias ou quem sabe anos naquela casa. Enquanto comíamos, nós conversávamos a respeito de qual seria nossa nova escola e também sobre a vizinhança.

- Bom meninos, sei que deve estar sendo um pouco difícil essa mudança para vocês dois, mas também poderão fazer novos amigos na nova escola e na vizinhança que fica perto daqui - comentou minha mãe.

- Mãe, não estou gostando muito daqui - comentei.

- Ah, normal, depois você se acostuma, agora me ajudem a limpar essa mesa.


O momento que eu temia havia chegado, a noite. Em algumas partes da casa, as coisas funcionavam da maneira antiga, infelizmente nos corredores não haviam lâmpadas, então era preciso acender velas naqueles velhos castiçais de prata desgastada. Sempre tive um certo medo de corredores, quando passava por um sentia que alguém estava me seguindo ou que a qualquer momento alguma coisa saíria de uma das portas, temia até aos meus próprios passos que me enganavam, fazendo com que eu pensasse que os passos não eram meus. Esse medo era ainda maior naquele corredor gelado, velho, escuro e silencioso.

Na primeira noite eu tive o azar de ser o último a sair da cozinha para o quarto, estava distraído brincando com a comida. Olhei ao redor, estava completamente sozinho, eu e o silêncio pesado que sempre estava predominante em qualquer lugar que estivéssemos naquele casarão. Minha primeira vontade foi gritar por minha mãe, mas resolvi escolher a outra opção, mesmo sabendo que eu poderia me arrepender depois.

Levantei daquela desconfortável cadeira de madeira, não me preocupei em levar o prato à pia, apenas queria ir logo embora dali. Corri, o mais rápido que pude, o que havia resultado em um tremendo descuido, bati o pé esquerdo na porta que levava ao hall de entrada e caí em cima do grande tapete puído. Todos aqueles rostos deformados olhavam para mim sem expressão alguma, um deles parecia estar segurando uma faca, tinha seu olhar voltado para a mulher do lado esquerdo. Rapidamente tratei de me erguer e subi as escadas que levavam ao corredor onde estava meu quarto. Quando parei próximo ao corredor, pude ouvir sussurros vindo lá de baixo, mais precisamente do quartinho debaixo da escada.

"Certo... Certo... Certo... Certo... Certo... Certo..."

Estava difícil de respirar, uma pressão invisível apertava os meus pulmões, espremia cada artéria minha. Arfando, andei rapidamente em direção ao meu quarto, o corredor parecia interminável, felizmente meu irmão tinha deixado a luz acesa, mas isso não impedia aquele lugar de ser assombroso. Jurei ter visto uma silhueta escura passando pela porta aberta no final do corredor antes de eu ter entrado em meu quarto.

Meu irmão estava lendo um livro, ele não me parecia nada tenso, talvez porque estava viajando com aquela leitura, mas eu não conseguia nem falar. Para piorar as coisas, minha cama ficava de frente à uma pintura que meu pai tinha feito de um rosto de uma bailarina, que em qualquer outro lugar, em qualquer outra hora, seria uma ilustração bonita, mas ali naquela casa maldita, era mais uma obra de arte bizarra.

Deitei na cama, dei boa noite ao meu irmão e fechei os olhos, torcendo para que o dia seguinte chegasse rápido. Várias imagens e momentos se misturavam em minha cabeça: os momentos que antecederam a mudança, a primeira vez que vi a casa, o vulto entrando no quarto de visitas, os sussurros que viam do quartinho embaixo da escada...

O mundo dos sonhos já havia chegado, mas fora interrompido repentinamente, por uma sensação estranha que mesclava um frio intenso a um calor discreto, abri os olhos. Me neguei a acreditar que aquilo estava ali, olhando para mim, cerrei os olhos novamente, mas ao abrí-los vi que a coisa ainda não tinha desaparecido, estava em cima do meu lençol, me observando.

Meu coração acelerou, as batidas rápidas e fortes, combinadas com o calor interno e o ar congelante fizeram com que minha respiração fosse prejudicada, eu sugava o máximo de ar que podia com a boca, mas não parecia suficiente, os pêlos de meus braços arrepiaram-se como se estivessem magnetizados por uma televisão ao ser ligada e um dedo invisível parecia passar lentamente por toda minha coluna, causando o tão conhecido calafrio.

A bailarina estava em cima da minha cama e fixava o olhar em mim, como se eu fosse seu maior objeto de desejo, não piscava em momento algum, ou melhor, parecia incapaz disso. Eu deveria dizer "a cabeça da bailarina" pois seu corpo estava ausente, este fora substituído por um tronco de uma aranha e seus respectivos 4 pares de patas peludas, que se mexiam de uma maneira nojenta, para cima e para baixo, lentamente. A sombra forte presente nos olhos da mulher dava maior destaque às suas verdes pupilas mórbidas, como se a tivessem tirado do quadro, a encaixado no corpo aracnídeo, sem se preocupar em pôr expressões naquela face. O forte batom carmecim em seus lábios carnudos davam maior constraste àquela pele pálida como a de um cadáver.

Não gritei pois isso faria meu irmão acordar, o máximo que pude fazer foi cobrir-me com o lençol, esperando que aquilo fosse embora. Passado um tempo que me pareceu muito longo, a criatura desceu pela perna de madeira da minha cama e lentamente saiu pela porta do quarto.

Eu sentia o clima ficar mais pesado ao meu redor, com certeza não conseguiria dormir naquela noite, algo me dizia que alguma coisa se aproximava de mim. Olhei para cima e a mulher com corpo de aranha descia traçando sua teia, vindo em minha direção. Não pude aguentar mais, saí gritando pelo quarto e fui correndo até onde meus pais dormiam, eles acordaram assustados e meu irmão também.

- Filho! Meu Deus! O que foi!? - perguntou minha mãe, com um olhar perplexo.

- U-uma... Uma, uma mulher! U-uma m-mulher aranha!

- O quê? Filho, foi só um pesadelo, vai, volta a dormir - isso que o meu pai disse seria a resposta de qualquer outro pai.

- É, seu pai está certo, volte pra sua cama, não tem nada lá.

- Não! Não vou voltar!

- Ai ai, está bem filho pode dormir com a gente hoje - encerrou minha mãe.

Enquanto eles facilmente deitaram e dormiram, eu fiquei apenas de olhos fechados esperando que o sono chegasse novamente, o que com certeza demoraria.Sem ter percebido eu já estava sonhando, em meus devaneios a mulher aracnídea me observava de cima de um muro amarelo, que aos poucos se enchia de musgo...

A manhã havia chegado finalmente, o galo cocoricava com vigor. Parecia que eu tinha lutado com alguém na noite anterior, me sentia pesado e cansado, acordei suado, não há sensação mais desagradável que esta. Teria permanecido deitado ali o resto do dia, senão fosse o fato de que o tio Les iria nos visitar e dormir na casa naquela noite, "pobre tio Les".

Minha mãe já me chamava para tomar o café da manhã. Com o mínimo de disposição, levantei e fui ao banheiro lavar o rosto que estava repleto de olheiras, em pleno 10 anos de idade, me sentia um velho. Desci para a cozinha, pensando no dia anterior e se tudo aquilo tinha realmente acontecido.



Continua...

Os contos de Lesaint (Parte Final)

- Ah, encontrei... Hoje. Na plantação de trigo.

- Tolo! Não vê que pode ser um dos livros do senhor que ele deixou cair!? Ah, se ele descobre, você está morto, precisa se livrar disso.

- Tudo bem mamãe... Mas posso ler uma história? Aqui diz que são histórias de ninar.

- Leia, filho...

O irmão mais novo estava sentado em uma das cadeiras da mesa de jantar, observando a cena, ouvindo a história do irmão atentamente. No começo parecia algo bastante inocente, mas aos poucos os traços de perversidade começaram a surgir: "...e ela comeu a própria cabeça".

- Chega! Pare de ler essa porcaria! Onde já se viu!? Que espécie de contos de ni... - a mãe deles não chegou a concluir a frase, ficou paralisada de boca aberta.

- Mamãe?

Os olhos dela começaram a revirar e lágrimas de sangue começaram a descer deles e pouco depois, de seus ouvidos. Um barulho esquisito parecia sair de sua cabeça, como se os ossos do crânio estivessem se esmigalhando e de fato estava, a cabeça parecia que estava sendo comprimida, esmagada, estava afundando. Os olhos começaram a saltar para fora caindo no chão junto com os restos de massa cefálica, agora a cabeça estava disforme e afundava para dentro da garganta dela, o maxilar se mexia como se estivesse mastigando algo e de fato estava, a mãe dele estava devorando a própria cabeça, em pouco tempo, os últimos fios de cabelo haviam sido engolidos pela garganta da mulher e ela desabou no chão.

Os meninos começaram a gritar desesperados, logo o pai deles e a avó chegaram no local e viram o sangue por toda parte e o cadáver da mãe dos garotos. O pai, chorando e suando frio, perguntava gaguejando aos filhos o que tinha acontecido e então o irmão mais novo contou tudo, que depois do "conto de ninar" a mãe devorou a própria cabeça.

Obviamente ele não acreditou naquele absurdo, mas não conseguia provar que havia sido alguma outra coisa, já que não havia armas nem nada perigoso no local. A velha chorava ajoelhada perto do corpo da mulher. O pai pegou o livro negro e o jogou em uma fogueira. Pouco depois, o senhor Lesaint apareceu por lá.

- O que diabos aconteceu por aqui? - disse ao mesmo tempo que entrava na casa dos servos, viu o cadáver da mulher - Mas que...

- Senhor, nós podemos explicar! - adiantou-se o pai.

- Não me expliquem nada seus sádicos! Tratem de se livrar desse corpo ou os próximos serão o de vocês! Bah! Um a menos para trabalhar, como esperam me sustentar assim seus imundos? - e foi embora de volta a sua casa, resmungando coisas incompreensíveis.

Durante os dias que se seguiram, o menino mais velho permaneceu imóvel, não falava, não ouvia e nem sequer piscava os olhos, estava em estado de choque pela morte da mãe. O pai estava desesperado, não sabia o que fazer, ou melhor, não havia o que fazer. Todos os dias ele alimentava o garoto com sopa e rezava, na esperança que um dia ele voltasse a falar e a se mexer. Em uma certa noite, o pai dos meninos estava em um sono profundo, repleto de pesadelos, sonhava que estava sendo controlado como uma marionete. Nesta noite, ele acordou com os olhos vidrados e foi até o filho mais novo, pegou-o pelas pernas e foi arrastando-o para fora de casa. Chegou na cova em que o livro tinha sido encontrado e jogou o garoto dentro dela, ele continuava como um boneco, sem expressão alguma. O pai pegou uma pá e começou a enterrar o filho.

No dia seguinte, a velha acordou o pai dos meninos com seus gritos escandalosos.

- É ele! Só pode ser obra dele! Ele voltou!

- Acalme-se mãe! Ficou maluca!? - dizia o filho dela.

- O duende! Oswald! O duende voltou, ele está fazendo tudo isso! Ele levou o seu filho!

- Ah não! Meu deus! O que está acontecendo!? Porque ele levou o Gerald!?

- Não sei! Devemos falar com o senhor Lesaint!

- Está doida!? Ele não vai ouvir a gente!

- Não me impeça Oswald! - então a velhinha foi em direção a casa dos Lesaint, o mais rápido que pôde.

Na noite anterior àquele dia, o filho único de Lesaint havia encontrado um livro embaixo de sua cama, era negro e tinha o título: “Contos de Ninar do Tio Lesaint”,então começou a lê-lo. "... logo após jantarem, garfos e facas voaram contra todos, pregando-os na mesa de madeira e...", o menino fora interrompido, a mãe dele o chamava para jantar.

A velhinha chegou na casa dos Lesaint, bateu na porta, mas ninguém a abria, agora batia com mais força, mesmo assim não havia nenhum sinal de alguém lá dentro. Ela resolveu espiar pela janela. Normalmente os Lesaint já teriam aberto a porta e difamado a velha, quem sabe até teriam dado chicotadas também.

Observando através da janela que dava na sala de jantar deles, ela viu, a chacina em cima da mesa. Estavam todos mortos, todos os Lesaint, pregados na mesa com garfos e facas; a madeira lisa agora tingida de vermelho.

A velha ficou sem ar, sentiu um calor anormal junto com um frio esquisito, mal conseguindo respirar, voltou para o seu casebre, caindo inúmeras vezes durante o caminho.

- Oswald... Oswald!

- O que foi mãe!? - Oswald vinha correndo dos fundos da casa - Os Lesaint fizeram algo com você!?

- Estão mortos... Todos eles, todos os Lesaint!

- O QUÊ!? Como... Como isso foi acontecer!?

- Não sei Oswald! Mas temos que ir embora daqui rápido! Antes do anoitecer!

- Sim! Vou pegar o necessário!

- Eu vou buscar o Herald - disse a velha senhora.

No fim da tarde, todos os servos de Lesaint, sabendo de sua morte, haviam deixado o local junto com os servos do casebre. Ali nas imensas terras dos Lesaint já não tinha mais nenhum ser vivo. Apenas os restos mortais de quem outrora estava respirando, que habitarão aquela pequena região para sempre. O pequenino estava sozinho novamente, sem mais ninguém para divertí-lo, só o restava ir para outro lugar.


"Dizem que agora habita as terras dos Blosson, mas não há certeza. Não sabemos se o levaram de volta para o inferno ou se ele ainda está entre nós, mas se ele estiver, que Deus nos proteja."



Fim.

Os Contos de Lesaint (Parte 2)

- Pronto menino, agora vá dormir.

- A senhora acha que o diabinho anda mesmo por aqui?

- Ah, sim. Acredito que seja o mesmo que meu pai capturou anos atrás. Eu com certeza não gostaria de encontrar ele - a velhinha já estava com a cabeça pendendo para o lado direito, devido ao sono.

- Vá dormir vovó.

- Ora moleque, não me dê ordens - com isso levantou-se e dirigiu-se ao celeiro, onde dormia com as alfafas.

- Boa noite vovó - disse o menino às paredes.

O garoto agora estava sozinho, deitado em uns trapos de tecido no chão de madeira rústica, apenas ele e o silêncio, que de tão profundo era pesado, como se tivesse alguém tapando os ouvidos dele. Seu irmão e seus pais dormiam no único quarto do casebre, ele por ser o irmão mais velho, dormia separado dos pais, na sala, agora iluminada somente pelo luar, depois da senhora ter apagado as velas.

O menino já estava caindo em sono profundo, as imagens se misturavam em sua mente, os contos de sua avó, a pedrada que levou do senhor, os dias de trabalho no sol forte e no inverno rigoroso e todas as outras lembranças de sua vida miserável. Ele tinha se acostumado a dormir naquele lugar que cheirava a rato morto, incontáveis vezes já fora incomodado por esses infames animais que quase todas as noites urinavam na mesinha velha perto dos trapos que ele chamava de cama.

Quando estava quase penetrando no mundo dos sonhos, ouviu um barulho perto da velha mesinha, mas não se incomodou, achou que mais uma vez seriam os ratos. No entanto, os ruídos começaram a irritá-lo e ele virou para o lado da mesa para ver o que estava acontecendo, mas ao abrir os olhos não viu nada além da parede de pedra. Cerrou os olhos novamente, dessa vez foi um ruído baixo mas pertubador, parecia alguém falando muito baixo, não era possível definir direito. O som ficava cada vez mais forte, embora continuasse quase inaudível, parecia estar penetrando na parte mais profunda do ouvido do garoto.

Assustado com isso, levantou e ficou sentado em sua "cama", olhando para todos os cantos daquela sala, à procura da origem do ruído. Quando virou novamente para o lado em que estava a mesinha, viu uma pequena silhueta negra embaixo dela, semelhante a uma sombra porém dava a idéia de algo concreto. Era possível assimilar a silhueta à algo de orelhas pontudas e com uma calda longa, estava lá, parado, observando o menino, sejá lá o que fosse aquilo. O garoto estava paralisado, olhando para a pequena coisa, que mexia o rabo devagar, para cima e para baixo, parecia estar analisando o menino. A coisa pequena parou de mexer a calda.

A silhueta pareceu se atrapalhar um pouco antes de falar, como se tivesse usado uma língua errada ao invés de usar a que queria falar, então prosseguiu:

- Olá garoto, qual teu nome? - sibilou a criaturinha, num tom de voz carregado de maldade e falsidade, talvez fosse um esforço enorme para ela cumprimentar o garoto.

- Não vou dizer, você é mal - disse o menino, quase sussurrando, para não acordar os outros.

- Eu? Malvado? - o monstrinho riu - Não sô, apenas gosto de me divirtir - ele admirava o garoto com um olhar cheio de malícia, como se ele fosse um jantar bem saboroso.

- Você não existe. Estou sonhando, vou fechar os olhos e quando abrir vou estar acordado.

O menino fechou os olhos intensamente, rezando para que estivesse realmente sonhando.

- Ei idiota, ainda tô aqui.

O garoto se esforçou para não gritar e rolou para longe de onde estava, ao ver que o diabinho estava mais perto, quando ele abriu os olhos.

- Fique longe de mim.

- Relaxe, eu quero mostrá uma coisa pra tu - ele fitava o menino atentamente com seus olhos amarelados e brilhantes.

- O-o q-que quer?

- Siga eu, vô mostrá pra tu. Não vô machucar.

Após hesitar um bom tempo, vendo a pequena criatura saindo por um minúsculo buraco na parede rumo à noite enluarada, ele resolveu segui-lo. Abriu a porta de madeira, era difícil não fazê-la ranger, mas o garoto conseguiu sair da casa com muita cautela, os outros estavam em um sono muito pesado. Ao sair, deparou-se com a escura plantação de trigo que parecia bastante aterrorizante, devido ao vento frio da noite e da névoa forte que pairava no local. Foi até atrás do casebre, por onde o monstrinho tinha saído e ele não estava mais lá.

- Ei tolo, aqui atrás de tu!

O garoto se virou e olhou para o chão, lá estava a criatura. Parecia ainda mais bizarra vista à luz do luar, era possível ver cada detalhe de sua pele macilenta e negra, o grande e fino nariz balançava a cada movimento do bicho junto com a longa e fina calda negra; os olhos eram bem amarelados, o corpo era magricela e sua expressão sempre demonstrava nojo ao falar com o menino.

- Me segue! - o diabrete correu bastante rápido em direção à uma mata densa e o garoto o seguia, embora seus pés teimassem em obedecê-lo.

Finalmente, depois de uma pequena caminhada que lhe pareceu bastante longa, o menino chegou ao local em que o diabrete estava parado. Demorou um pouco para ver a cruz de madeira que estava diante dele, estava de frente à uma cova; seu coração parecia que ia sair do peito e o ar teimava em não entrar em seus pulmões.

- Vamos pivete, cave isso, pegue o presente pra tu! - ordenou o ser pequenino.

O menino começou a cavar com as mãos aquela terra suja, até que seus dedos, aqueles já calejados com o trabalho duro, enconstaram em algo mais sólido. Continuou a cavar devagar, tirando a terra de cima do objeto, era algo retangular, o menino tirou o objeto da cova e o limpou. Era um livro de capa preta, com coisas escritas em um dialeto estranho.

- Eu chamo ele de "Contos de Ninar do Tio Lesaint", é mágico garoto! Vai gostá! As letras mudam pra quem toca ele!

Agora estavam legíveis as letras que se encontravam na capa: "Contos de Ninar".

- Pivete, leve isso pra casa e conte as histórias pra todos, vá. Vá!

O garoto foi embora correndo muito rápido, com o coração quase saindo pela garganta. Chegando na casa, que se encontrava com a porta aberta, entrou e jogou-se na sua "cama", botou o livro embaixo dos trapos e cerrou os olhos, querendo dormir o mais rápido possível, mas não conseguiu, passou horas pensando no que tinha acontecido e o quão absurdo era tudo aquilo, nesse mar de pensamentos, acabou caindo no profundo mundo dos sonhos.

No dia seguinte, teve que acordar cedo, fora acordado por sua mãe. Todos perceberam que ele estava meio estranho, parecia assustado sempre. Quando o perguntavam se ele estava bem, apenas acenava com a cabeça ou dava um sorriso de leve. Assim se passava mais um dia rotineiro, com muito trabalho pesado, os dois meninos trabalhavam sempre na plantação de trigo, ceifando-o para que em seguida fosse levado ao moinho. As mãos do menino mais velho, o da pedra no olho, que encontrou o diabinho, estavam ensangüentadas, os calos haviam estourado e segurar as ferramentas exigiam um esforço enorme. Em uma das supervisões do Senhor Lesaint, a pequena foice caiu das mãos do garoto, que já não suportava mais a dor nelas. Lorde Lesaint, como se autodenominava, desferiu um golpe violento com seu novo chicote nas costas do menino, mais um ferimento para sua coleção. À noite, a mãe do menino cuidava das costas dele e ele lembrou-se do livro que havia pegado.

- Mamãe, olha o que eu achei - ele foi andando até os trapos e tirou o livro de lá.

- Onde conseguiu isso filho?


Continua...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Os Contos de Lesaint

Era Feudal, ano de 456.

A famosa idade das trevas, onde a economia não crescia e o clero dominava as massas, a cultura estava estagnada. A igreja mantinha todos os povos aprisionados pelo medo, abusavam da ignorância das pessoas, a dominavam, faziam o que queriam: torturas, orgias, sacrifícios, adultérios...

Tudo que acontecia de bom era obra de Deus e todas as coisas ruins eram relacionadas a Satanás. Assim estava concretizado o apocalipse na Terra, que durou séculos, onde os homens poderosos do clero comandavam todos, como se fossem a mão de Deus.

A denominação "Era Feudal" originado do feudalismo, deu-se com os senhores feudais e seus respectivos feudos, grandes terras que pertenciam inteiramente a cada senhor feudal. Tudo ali produzido apenas servia para a subsistência; quem era senhor feudal, seria sempre um senhor feudal, quem era servo, seria sempre servo.

Ali, naquela era de escuridão, havia um grande feudo chamado Lesaint cujo dono chamava-se Charles Lesaint, os feudos sempre tinham o nome do senhor feudal. Charles vivia com sua família arrogante, todos comiam como porcos; o pouco de comida q restava era jogada aos servos. Os servos mais recentes sequer tinham nome, haviam perdido a linhagem no decorrer das gerações, não sabiam se algum dia já tinham pertencido a alguma família.

Os servos apenas falavam algo quando estavam juntos somente eles. Um grupo menor deles vivia dentro de uma pequena casa acabada perto da plantação de trigo; era uma família: uma senhora, um homem, uma mulher e dois meninos. A diversão dos garotos era ouvir as histórias da velha senhora, que milagrosamente vivia aos 40 anos, o que era bastante tempo de vida na época. A velhinha não era polpada do trabalho pesado, o senhor feudal não perdoava ninguém, todos os servos tinham obrigação de trabalhar para sustentar a família Lesaint.

- Vovó! vovó! - exclamou um dos meninos,que tinha a mão direita ensagüentada de tanto ter trabalhado naquele dia e apenas um de seus olhos enxergava devido a uma pedra fincada no seu outro olho.

- Diga, menino - retrucou a velha.

- Vovó! Quero ouvir outra história hoje!

Esse pequeno grupo dos servos de Lesaint tinha o estranho costume de contar histórias sombrias às crianças e elas, estranhamente, gostavam. Vários desses contos eram
influenciados pelas histórias da igreja, coisas absurdas criadas apenas para afastar os fiéis do paganismo, afastar as pessoas de todo o conhecimento, para que assim o clero
continuasse com o reinado absoluto. No entanto, algumas dessas histórias eram tiradas do imaginário do povo, da sabedoria popular e haviam muitos que acreditavam realmente
nos fatos narrados pelos contadores.

- Calado, sua mãe está dormindo e você devia estar fazendo o mesmo a essa hora - disse a velhota enquanto enchia um copo com a água que estava em um velho balde de
madeira. Levando o copo à boca, tomou tudo de um só gole, o que fez com que parte da água escorresse da boca para o vestido velho que ela usava, então continuou - mas eu
contarei uma história para você moleque, para que durma de uma vez.

- Oba!

- Escute aqui garoto, esta que vou contar, nunca contei a você e na verdade preferiria não contar... Sinto que o meu dia de partir para a salvação está chegando, preciso passar
adiante - tomou mais um gole de água - mas nunca conte pra sua mãe.

- Prometo ficar calado vovó.

- Certo.

A velha levantou e pegou uns trapos que estavam em uma gaveta do criado mudo, ao voltar para o banquinho em que estava foi possível ouvir um estalo vindo de sua coluna
vertebral anciã.

- Veja menino, está vendo esses pêlos escuros?

- Sim vovó.

- São pêlos de duende. Meu pai capturou um quando era jovem. Eu nunca cheguei a ver, ele dizia que seria melhor pra mim não ver a criaturinha. Poucos dias depois encontrei meu pai
morto com um facão enfiado garganta abaixo. Ainda não sei se ele resolveu se matar, não me surpreende, com uma vida dessas, é melhor estar morto mesmo. Tenho suspeitas de
que esse diabinho nojento o matou de alguma forma. Alguns anos depois encontrei uma gaiola enferrujada em uma cabana velha que ele usava pra guardar as ferramentas do
trabalho e dentro dela encontrei esses pêlos negros. Guardo como prova de que o tal duende realmente existiu.

- Vovó, essa é a história?

- Não moleque, não é; mas a história fala de duendes também. Sem mais demora, vou contar logo, já está na hora de dormir, tem que acordar cedo amanhã pra ceifar o trigo.

A velha pegou uma das velas que estavam próximas e aproximou mais do rosto, destacando todas as suas rugas, sujeiras e sua boca desdentada. Finalmente, com uma voz
sombria e etérea, ela começou a narrar.

" Nos tempos antigos, há muitos e muitos anos, um dos demônios de Satanás resolveu fugir para o mundo dos vivos, era pequeno e negro, seus olhos esbanjavam maldade e perversão na sua definição mais crua, deslizava como uma sombra durante a noite, com seu rabo longo e fino sempre balançando de um jeito ameaçador. O monstrinho, tendo escapado do enxofre do inferno, estranhou o ar limpo dos mortais, mas acabou se acostumando em muito pouco tempo. Ele saía à noite pelas fazendas, pregando peças nada divertidas. Certo dia fez com que um garfo caísse "acidentalmente" de ponta no olho de um grande senhor das terras, em seguida, num momento de desespero, o senhor arrancou o garfo com olho e tudo, enquanto gritava pela casa, derrubando todos os objetos que encontrava pela frente. O diabinho pegou o garfo com o olho e foi embora da casa, já tinha sua janta garantida naquele lindo talher de prata. A criaturinha era dotada de poderes engraçados, que o permitia se divertir abusando dos mortais. O lugar em que o pequenino estava acabou sendo chamado de mal assombrado e ninguém mais queria morar ali, logo, a maioria das fazendas da região ficaram vazias. O demônio, triste com a falta de diversão, acabou migrando para uma floresta próxima, para assustar, torturar ou matar os viajantes. Dizem que muitos anos depois, uma tal família Lesaint derrubou parte da tal floresta para construir suas fazendas. O mal sempre rodeou o pequeno diabo, os demônios de Satanás sempre vinham em busca do diabrete para levá-lo de volta ao inferno, no entanto, não se sabe se conseguiram pegá-lo. Dizem que ele ainda anda aqui, pelas terras dos Lesaint, pregando suas peças ou roubando coisas."

(Continua...)