"Viaje além de sua imaginação"

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os Contos de Lesaint (Parte 2)

- Pronto menino, agora vá dormir.

- A senhora acha que o diabinho anda mesmo por aqui?

- Ah, sim. Acredito que seja o mesmo que meu pai capturou anos atrás. Eu com certeza não gostaria de encontrar ele - a velhinha já estava com a cabeça pendendo para o lado direito, devido ao sono.

- Vá dormir vovó.

- Ora moleque, não me dê ordens - com isso levantou-se e dirigiu-se ao celeiro, onde dormia com as alfafas.

- Boa noite vovó - disse o menino às paredes.

O garoto agora estava sozinho, deitado em uns trapos de tecido no chão de madeira rústica, apenas ele e o silêncio, que de tão profundo era pesado, como se tivesse alguém tapando os ouvidos dele. Seu irmão e seus pais dormiam no único quarto do casebre, ele por ser o irmão mais velho, dormia separado dos pais, na sala, agora iluminada somente pelo luar, depois da senhora ter apagado as velas.

O menino já estava caindo em sono profundo, as imagens se misturavam em sua mente, os contos de sua avó, a pedrada que levou do senhor, os dias de trabalho no sol forte e no inverno rigoroso e todas as outras lembranças de sua vida miserável. Ele tinha se acostumado a dormir naquele lugar que cheirava a rato morto, incontáveis vezes já fora incomodado por esses infames animais que quase todas as noites urinavam na mesinha velha perto dos trapos que ele chamava de cama.

Quando estava quase penetrando no mundo dos sonhos, ouviu um barulho perto da velha mesinha, mas não se incomodou, achou que mais uma vez seriam os ratos. No entanto, os ruídos começaram a irritá-lo e ele virou para o lado da mesa para ver o que estava acontecendo, mas ao abrir os olhos não viu nada além da parede de pedra. Cerrou os olhos novamente, dessa vez foi um ruído baixo mas pertubador, parecia alguém falando muito baixo, não era possível definir direito. O som ficava cada vez mais forte, embora continuasse quase inaudível, parecia estar penetrando na parte mais profunda do ouvido do garoto.

Assustado com isso, levantou e ficou sentado em sua "cama", olhando para todos os cantos daquela sala, à procura da origem do ruído. Quando virou novamente para o lado em que estava a mesinha, viu uma pequena silhueta negra embaixo dela, semelhante a uma sombra porém dava a idéia de algo concreto. Era possível assimilar a silhueta à algo de orelhas pontudas e com uma calda longa, estava lá, parado, observando o menino, sejá lá o que fosse aquilo. O garoto estava paralisado, olhando para a pequena coisa, que mexia o rabo devagar, para cima e para baixo, parecia estar analisando o menino. A coisa pequena parou de mexer a calda.

A silhueta pareceu se atrapalhar um pouco antes de falar, como se tivesse usado uma língua errada ao invés de usar a que queria falar, então prosseguiu:

- Olá garoto, qual teu nome? - sibilou a criaturinha, num tom de voz carregado de maldade e falsidade, talvez fosse um esforço enorme para ela cumprimentar o garoto.

- Não vou dizer, você é mal - disse o menino, quase sussurrando, para não acordar os outros.

- Eu? Malvado? - o monstrinho riu - Não sô, apenas gosto de me divirtir - ele admirava o garoto com um olhar cheio de malícia, como se ele fosse um jantar bem saboroso.

- Você não existe. Estou sonhando, vou fechar os olhos e quando abrir vou estar acordado.

O menino fechou os olhos intensamente, rezando para que estivesse realmente sonhando.

- Ei idiota, ainda tô aqui.

O garoto se esforçou para não gritar e rolou para longe de onde estava, ao ver que o diabinho estava mais perto, quando ele abriu os olhos.

- Fique longe de mim.

- Relaxe, eu quero mostrá uma coisa pra tu - ele fitava o menino atentamente com seus olhos amarelados e brilhantes.

- O-o q-que quer?

- Siga eu, vô mostrá pra tu. Não vô machucar.

Após hesitar um bom tempo, vendo a pequena criatura saindo por um minúsculo buraco na parede rumo à noite enluarada, ele resolveu segui-lo. Abriu a porta de madeira, era difícil não fazê-la ranger, mas o garoto conseguiu sair da casa com muita cautela, os outros estavam em um sono muito pesado. Ao sair, deparou-se com a escura plantação de trigo que parecia bastante aterrorizante, devido ao vento frio da noite e da névoa forte que pairava no local. Foi até atrás do casebre, por onde o monstrinho tinha saído e ele não estava mais lá.

- Ei tolo, aqui atrás de tu!

O garoto se virou e olhou para o chão, lá estava a criatura. Parecia ainda mais bizarra vista à luz do luar, era possível ver cada detalhe de sua pele macilenta e negra, o grande e fino nariz balançava a cada movimento do bicho junto com a longa e fina calda negra; os olhos eram bem amarelados, o corpo era magricela e sua expressão sempre demonstrava nojo ao falar com o menino.

- Me segue! - o diabrete correu bastante rápido em direção à uma mata densa e o garoto o seguia, embora seus pés teimassem em obedecê-lo.

Finalmente, depois de uma pequena caminhada que lhe pareceu bastante longa, o menino chegou ao local em que o diabrete estava parado. Demorou um pouco para ver a cruz de madeira que estava diante dele, estava de frente à uma cova; seu coração parecia que ia sair do peito e o ar teimava em não entrar em seus pulmões.

- Vamos pivete, cave isso, pegue o presente pra tu! - ordenou o ser pequenino.

O menino começou a cavar com as mãos aquela terra suja, até que seus dedos, aqueles já calejados com o trabalho duro, enconstaram em algo mais sólido. Continuou a cavar devagar, tirando a terra de cima do objeto, era algo retangular, o menino tirou o objeto da cova e o limpou. Era um livro de capa preta, com coisas escritas em um dialeto estranho.

- Eu chamo ele de "Contos de Ninar do Tio Lesaint", é mágico garoto! Vai gostá! As letras mudam pra quem toca ele!

Agora estavam legíveis as letras que se encontravam na capa: "Contos de Ninar".

- Pivete, leve isso pra casa e conte as histórias pra todos, vá. Vá!

O garoto foi embora correndo muito rápido, com o coração quase saindo pela garganta. Chegando na casa, que se encontrava com a porta aberta, entrou e jogou-se na sua "cama", botou o livro embaixo dos trapos e cerrou os olhos, querendo dormir o mais rápido possível, mas não conseguiu, passou horas pensando no que tinha acontecido e o quão absurdo era tudo aquilo, nesse mar de pensamentos, acabou caindo no profundo mundo dos sonhos.

No dia seguinte, teve que acordar cedo, fora acordado por sua mãe. Todos perceberam que ele estava meio estranho, parecia assustado sempre. Quando o perguntavam se ele estava bem, apenas acenava com a cabeça ou dava um sorriso de leve. Assim se passava mais um dia rotineiro, com muito trabalho pesado, os dois meninos trabalhavam sempre na plantação de trigo, ceifando-o para que em seguida fosse levado ao moinho. As mãos do menino mais velho, o da pedra no olho, que encontrou o diabinho, estavam ensangüentadas, os calos haviam estourado e segurar as ferramentas exigiam um esforço enorme. Em uma das supervisões do Senhor Lesaint, a pequena foice caiu das mãos do garoto, que já não suportava mais a dor nelas. Lorde Lesaint, como se autodenominava, desferiu um golpe violento com seu novo chicote nas costas do menino, mais um ferimento para sua coleção. À noite, a mãe do menino cuidava das costas dele e ele lembrou-se do livro que havia pegado.

- Mamãe, olha o que eu achei - ele foi andando até os trapos e tirou o livro de lá.

- Onde conseguiu isso filho?


Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário