"Viaje além de sua imaginação"

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Aracnídea

Nunca gostei de mudanças, aquela já era a terceira em minha vida (que me recordo), curta vida devo dizer, tinha acabado de fazer 10 anos. Os pais sempre dizem que iremos para um lugar melhor, mais bem localizado ou maior... Como todos sabem, sempre há uma quebra de expectativa quanto a isso.

Naquela vez eu sentia algo diferente em relação à casa para qual estávamos indo na tarde absurdamente calma daquele dia. No carro, eu adorava olhar a paisagem pela janela, todas aquelas árvores secas devido ao Outono passando rapidamente, as milhares de folhas pardas acompanhando a dança do vento. Durante todo o caminho para o novo lugar eu não estava em meu corpo, minha mente viajava juntos com as folhas. Quando voltei à realidade, finalmente havíamos chegado.

Assim que o ronco do motor do automóvel cessou, pude ouvir claramente cada folha seca que ia de encontro à carcaça do carro. Todos saíram do veículo, eu fui por último, como de costume em todas as mudanças. Achei estranho a maneira que encontrei eles assim que saí, estavam todos parados, olhando para o casarão a frente deles. Eu não podia negar que realmente era enorme, "grande e assustadora" pensei.

Parecia uma típica casa de filme de terror americano dos anos 80, com um balanço de madeira que ia e vinha num ritmo pertubador, aquele barulho de correntes enferrujadas que parecia friamente cronometrado, a cada dois segundos o mesmo ruído se repetia. As folhas secas cobriam a escada de madeira que levava à porta de entrada, aquela sinistra porta escura, não estava podre nem úmida, mas parecia estar. O casarão era todo feito de madeira, a parede branca da fachada era ofuscada por uma sombra densa que com certeza dava um frio na espinha de qualquer um que passasse por ali.

Não me admiro que um imóvel imenso daquele tivesse sido vendido por um preço tão baixo aos meus pais, ninguém queria ou sequer pensava em morar ali. Bem, eu fui um dos sortudos que iriam conhecer aquela coisa, as expectativas não eram nada boas.

Todos caminharam em direção à entrada da casa, eu e meu irmão fazíamos isso com certa relutância. Vi minha mãe tirando as chaves do bolso, elas eram grandes e rústicas, assim como a maçaneta e a fechadura da porta, a primeira lembrava o rosto de uma gárgula, nada animador.

Tínhamos entrado na casa. O hall de entrada ainda estava meio enpoeirado, parecia que aquele lugar acumulava teias de aranha muito facilmente, já que o antigo dono do local havia feito uma limpeza geral antes de ir embora.

- Mãe, tem certeza que esse lugar não é assombrado? - disse eu, depois de tanto tempo contendo essa pergunta.

- Assombrado? Claro que não filho! O dono não falou nada a respeito disso. Tenho certeza de que vocês vão gostar bastante daqui.

Infelizmente ela não estava certa, nem a criança mais cética do mundo se divertiria em um lugar como aquele. Os adultos como naturalmente são céticos após conviver tantos anos com a realidade e os duros esforços em manter a família, não se intimidaram com aquele local, ao menos meus pais não.

- Seu tio Les vai vir para cá passar uma noite conosco amanhã - disse meu pai, olhando diretamente para mim.

Meu irmão já estava bisbilhotando os antigos móveis da casa que foram comprados juntos com a mesma. Havia um tapete bizarro no meio do hall da entrada, de muito mal gosto devo dizer: milhares de pessoas olhavam em direção a algo inexistente naquela tapeçaria, algumas delas com deformidades que só poderiam ser notadas se observadas por um bom tempo, havia um velho que parecia estar dormindo, se não fosse pelo lençol manchado de sangue em qual estava deitado, difícil de ser notado se não fosse olhado com atenção.

Quando parei de olhar aquela obra de arte macabra, percebi que estava sozinho naquele hall, rapidamente corri para onde as vozes dos meus pais estavam ecoando. A cada segundo que passava naquela sala gigante, maior era o calafrio que eu sentia.

- Filho! - exclamou minha mãe após me ver entrando na cozinha correndo - Vamos lá em cima olhar o seu quarto novo?

- Certo - certamente não havia entusiasmo algum em minha voz.

Ao chegarmos no quarto percebi que eu e meu irmão teríamos noites de insônia, era bastante obscuro, mesmo que abrissemos as cortinas ao máximo, pouca iluminação entraria ali, nossas camas já estavam lá, eram antigas como os outros móveis da casa, ambas cobertas com um cortinado, aquele cheiro de mofo permamente não saíria de lá mesmo que aquilo fosse lavado milhares de vezes. Mesmo com minha mãe do meu lado, a sensação de que havia alguém atrás de mim apenas aumentava.

- Mãe, estou com fome - qualquer desculpa para sair dali seria válida.

- Certo, vamos lá embaixo, seu pai está preparando uns sanduíches.

Aquele momento em família me fez esquecer por algumas instantes o quão ruim era saber que iria passar dias ou quem sabe anos naquela casa. Enquanto comíamos, nós conversávamos a respeito de qual seria nossa nova escola e também sobre a vizinhança.

- Bom meninos, sei que deve estar sendo um pouco difícil essa mudança para vocês dois, mas também poderão fazer novos amigos na nova escola e na vizinhança que fica perto daqui - comentou minha mãe.

- Mãe, não estou gostando muito daqui - comentei.

- Ah, normal, depois você se acostuma, agora me ajudem a limpar essa mesa.


O momento que eu temia havia chegado, a noite. Em algumas partes da casa, as coisas funcionavam da maneira antiga, infelizmente nos corredores não haviam lâmpadas, então era preciso acender velas naqueles velhos castiçais de prata desgastada. Sempre tive um certo medo de corredores, quando passava por um sentia que alguém estava me seguindo ou que a qualquer momento alguma coisa saíria de uma das portas, temia até aos meus próprios passos que me enganavam, fazendo com que eu pensasse que os passos não eram meus. Esse medo era ainda maior naquele corredor gelado, velho, escuro e silencioso.

Na primeira noite eu tive o azar de ser o último a sair da cozinha para o quarto, estava distraído brincando com a comida. Olhei ao redor, estava completamente sozinho, eu e o silêncio pesado que sempre estava predominante em qualquer lugar que estivéssemos naquele casarão. Minha primeira vontade foi gritar por minha mãe, mas resolvi escolher a outra opção, mesmo sabendo que eu poderia me arrepender depois.

Levantei daquela desconfortável cadeira de madeira, não me preocupei em levar o prato à pia, apenas queria ir logo embora dali. Corri, o mais rápido que pude, o que havia resultado em um tremendo descuido, bati o pé esquerdo na porta que levava ao hall de entrada e caí em cima do grande tapete puído. Todos aqueles rostos deformados olhavam para mim sem expressão alguma, um deles parecia estar segurando uma faca, tinha seu olhar voltado para a mulher do lado esquerdo. Rapidamente tratei de me erguer e subi as escadas que levavam ao corredor onde estava meu quarto. Quando parei próximo ao corredor, pude ouvir sussurros vindo lá de baixo, mais precisamente do quartinho debaixo da escada.

"Certo... Certo... Certo... Certo... Certo... Certo..."

Estava difícil de respirar, uma pressão invisível apertava os meus pulmões, espremia cada artéria minha. Arfando, andei rapidamente em direção ao meu quarto, o corredor parecia interminável, felizmente meu irmão tinha deixado a luz acesa, mas isso não impedia aquele lugar de ser assombroso. Jurei ter visto uma silhueta escura passando pela porta aberta no final do corredor antes de eu ter entrado em meu quarto.

Meu irmão estava lendo um livro, ele não me parecia nada tenso, talvez porque estava viajando com aquela leitura, mas eu não conseguia nem falar. Para piorar as coisas, minha cama ficava de frente à uma pintura que meu pai tinha feito de um rosto de uma bailarina, que em qualquer outro lugar, em qualquer outra hora, seria uma ilustração bonita, mas ali naquela casa maldita, era mais uma obra de arte bizarra.

Deitei na cama, dei boa noite ao meu irmão e fechei os olhos, torcendo para que o dia seguinte chegasse rápido. Várias imagens e momentos se misturavam em minha cabeça: os momentos que antecederam a mudança, a primeira vez que vi a casa, o vulto entrando no quarto de visitas, os sussurros que viam do quartinho embaixo da escada...

O mundo dos sonhos já havia chegado, mas fora interrompido repentinamente, por uma sensação estranha que mesclava um frio intenso a um calor discreto, abri os olhos. Me neguei a acreditar que aquilo estava ali, olhando para mim, cerrei os olhos novamente, mas ao abrí-los vi que a coisa ainda não tinha desaparecido, estava em cima do meu lençol, me observando.

Meu coração acelerou, as batidas rápidas e fortes, combinadas com o calor interno e o ar congelante fizeram com que minha respiração fosse prejudicada, eu sugava o máximo de ar que podia com a boca, mas não parecia suficiente, os pêlos de meus braços arrepiaram-se como se estivessem magnetizados por uma televisão ao ser ligada e um dedo invisível parecia passar lentamente por toda minha coluna, causando o tão conhecido calafrio.

A bailarina estava em cima da minha cama e fixava o olhar em mim, como se eu fosse seu maior objeto de desejo, não piscava em momento algum, ou melhor, parecia incapaz disso. Eu deveria dizer "a cabeça da bailarina" pois seu corpo estava ausente, este fora substituído por um tronco de uma aranha e seus respectivos 4 pares de patas peludas, que se mexiam de uma maneira nojenta, para cima e para baixo, lentamente. A sombra forte presente nos olhos da mulher dava maior destaque às suas verdes pupilas mórbidas, como se a tivessem tirado do quadro, a encaixado no corpo aracnídeo, sem se preocupar em pôr expressões naquela face. O forte batom carmecim em seus lábios carnudos davam maior constraste àquela pele pálida como a de um cadáver.

Não gritei pois isso faria meu irmão acordar, o máximo que pude fazer foi cobrir-me com o lençol, esperando que aquilo fosse embora. Passado um tempo que me pareceu muito longo, a criatura desceu pela perna de madeira da minha cama e lentamente saiu pela porta do quarto.

Eu sentia o clima ficar mais pesado ao meu redor, com certeza não conseguiria dormir naquela noite, algo me dizia que alguma coisa se aproximava de mim. Olhei para cima e a mulher com corpo de aranha descia traçando sua teia, vindo em minha direção. Não pude aguentar mais, saí gritando pelo quarto e fui correndo até onde meus pais dormiam, eles acordaram assustados e meu irmão também.

- Filho! Meu Deus! O que foi!? - perguntou minha mãe, com um olhar perplexo.

- U-uma... Uma, uma mulher! U-uma m-mulher aranha!

- O quê? Filho, foi só um pesadelo, vai, volta a dormir - isso que o meu pai disse seria a resposta de qualquer outro pai.

- É, seu pai está certo, volte pra sua cama, não tem nada lá.

- Não! Não vou voltar!

- Ai ai, está bem filho pode dormir com a gente hoje - encerrou minha mãe.

Enquanto eles facilmente deitaram e dormiram, eu fiquei apenas de olhos fechados esperando que o sono chegasse novamente, o que com certeza demoraria.Sem ter percebido eu já estava sonhando, em meus devaneios a mulher aracnídea me observava de cima de um muro amarelo, que aos poucos se enchia de musgo...

A manhã havia chegado finalmente, o galo cocoricava com vigor. Parecia que eu tinha lutado com alguém na noite anterior, me sentia pesado e cansado, acordei suado, não há sensação mais desagradável que esta. Teria permanecido deitado ali o resto do dia, senão fosse o fato de que o tio Les iria nos visitar e dormir na casa naquela noite, "pobre tio Les".

Minha mãe já me chamava para tomar o café da manhã. Com o mínimo de disposição, levantei e fui ao banheiro lavar o rosto que estava repleto de olheiras, em pleno 10 anos de idade, me sentia um velho. Desci para a cozinha, pensando no dia anterior e se tudo aquilo tinha realmente acontecido.



Continua...

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