"Viaje além de sua imaginação"

quinta-feira, 18 de março de 2010

Além do Sepulcro



Quantos dias e quantas noites haviam se passado? Eu realmente não sabia. Um sentimento desconhecido por mim brotava agora nas entranhas de meu coração, seus batimentos aos poucos aceleravam, mesmo com todo aquele peso sobre ele. O sangue que outrora circulava lentamente, agora começava a ferver, estava esquentando no ritmo de meu corpo frio. Os ossos rígidos e doloridos, "Aaah, como me fez mal todo aquele frio que senti". Eu estou confortavelmente confuso, delirando com meus próprios pensamentos, viajando em meu subconsciente.

Progressivamente a pesada realidade vinha caindo sobre minha pobre alma recém-despertada, meu corpo chumbado aos poucos estava absorvendo a líquida essência extraterrena. O preenchimento da carne humana, pela primeira vez na vida estava sentindo aquilo na pele, "Estava eu reencarnando? Finalmente voltando à prazerosa vida?".

"Será que há séculos eu tinha despertado? Que lugar era aquele? Que lugar é este, tomado pela escuridão eterna?". Me senti um ser vivo novamente, o sangue circulava, quente como o fogo; eu podia sentir meus pulmões inchando novamente, realizando seus movimentos involuntários, "Ah, o ar terreno!". Demorei um pouco para perceber que não havia muito o que inspirar ali, não sei se foram segundos, minutos, horas, dias ou anos. Fui tomado por uma sensação de pânico quando passei os dedos pela superfície lisa acima de mim, eu estava vivo, porém preso, cercado pela escuridão claustrofóbica, não havia espaço algum para movimentar-me. "Que diabos de lugar é este!". Acima de mim, ouvi uns sons distantes, abafados.

- Não! Meu pobre Paul! Por quê!? Por quê!?

"Paul? Eu sou o Paul!". Me debati como um louco dentro daquele compartimento limitado, gritei o mais alto que pude, implorando por ajuda; esforço inútil. Não pude mais ouvir os prantos do povo lá de cima, tinham ido embora.

Minha alma voltara em hora errada. Em um tempo indefinido, apodreci ali, a 7 palmos abaixo da grama verde e vívida que pairava lá no mundo de cima.

"Hora de voltar de onde vim"

terça-feira, 16 de março de 2010

A Breve História de Keith Gallagan


Eu andava olhando para o chão sujo das ruas de Nova York, reparando em cada embalagem de bombom, em cada cesta de lixo, em cada saco plástico. Naquele dia eu estava decidido em fazer o que tanto queria, carregava comigo o instrumento de trabalho, escondido no casaco. O beco escuro, agora na minha frente, simbolizava o local certo, era a entrada dos fundos de um dos clubes noturnos famosos do bairro. Tentei abrir a porta de ferro, mas estava trancada, como suspeitei. Tirei a enorme arma que eu carregava de dentro do casaco e atirei na fechadura, chutei a porta para arrombá-la.


Entrando no local, era possível ouvir o som abafado da música eletrônica que tocava no palco distante, a fumaça do gelo seco que preenchia os fundos do clube embaçava minha visão e tornava difícil a respiração. Dois seguranças se aproximavam de mim, os vultos largos e altos.

- Ei! O que pensa que está...

Ele foi silenciado com um tiro de minha escopeta, agora voava para longe. O outro agarrou a arma com as mãos, acabou perdendo-as após um disparo, enquanto gritava de dor, me aproximei e lhe dei um chute na face.

Segui até a cortina, que levava ao palco onde a dançarina realizava sua Pole Dance.
Peguei o molotov que havia preparado em casa e joguei na platéia, todos corriam assustados, alguns rolavam no chão em chamas. Em seguida atirei para todos os lados, até gastar todas as balas que comprei, o sangue pintava as paredes de vermelho, a dançarina agora estava olhando fixo para baixo, no chão, nunca mais iria voltar a dançar. “Todos aqueles porcos mereciam aquilo, a morte era pouco para eles”.

Saí do local, novamente pela porta dos fundos, corri em direção à rua cinzenta e voltei para casa, andando pelos becos escuros para que a polícia não me encontrasse. Chegando a meu quarto, me joguei na cama e desmaiei devido ao cansaço.


Acordei olhando para o despertador, que agora fazia um barulho estridente, o derrubei no chão para calá-lo. Ao me levantar, tirei o casaco e fui ao banheiro, não podia me atrasar para o trabalho, aquele banho era um dos poucos momentos relaxantes que eu tinha, naquele dia parecia ainda mais prazeroso.

Eu trabalho em uma das maiores empresas de Nova York, para mim dinheiro nunca foi problema, tinha uma coleção de carros em minha mansão. Na garagem escolhi o carro que mais se adaptava ao meu humor naquele dia, uma Ferrari preta. Na rua todos olhavam para meu veículo, pessoas boquiabertas com os olhos arregalados, isso me enchia de satisfação.

Na empresa todos me cumprimentavam, as mulheres me mostravam um sorriso sedutor, sempre tive uma tara por uma delas, a única que não me dava atenção, porém naquele dia maravilhoso tudo parecia diferente, as coisas mudaram para melhor. Ellen, a tão cobiçada mulher agora vinha em minha direção com seu olhar sexy, o sorriso perfeito no rosto.

- E então garotão, está livre hoje à noite? - Disse ela.

- O quê? O que te levou a mudar de atitude assim tão de repente hein senhorita?

- Ligue para mim quando sair do trabalho, estarei no restaurante Sacré Coeur.
Satisfeita em ter me deixado abobalhado, ela foi embora para seu escritório, o lindo e longo cabelo negro e brilhante balançando suavemente, deixando seu perfume no ar, eu fitava o seu belo traseiro. “Hoje eu acordei com o pé direito” pensei.

- Ei Keith! Hoje à noite vamos ao clube não é? - Perguntou um de meus colegas de trabalho, me despertando dos devaneios.

- Ah cara, desculpa, mas não vou poder ir, sabe como é, agenda lotada, obrigado pelo convite - sorri.

A tão esperada noite havia chegado, meu coração batia cada vez mais forte, minhas mãos tremiam de hesitação, foi difícil abrir a porta do carro, nunca pensei que um dia seria trabalhoso colocar uma chave em sua devida fechadura.

Fui até a linda rua iluminada pelas luzes coloridas dos restaurantes, era um verdadeiro pólo gastronômico aquele lugar, os estacionamentos estavam todos lotados, tive que estacionar umas duas ruas depois, em um estacionamento privado. Estava com pena de sujar os meus sapatos novos, andei olhando para o chão, passando longe de qualquer poça de água.

Uma rua antes do restaurante, a polícia abordava um homem, com as armas apontadas para ele, o criminoso carregava uma escopeta, nunca imaginei que aquele bairro nobre e movimentado fosse tão perigoso.

O letreiro luminoso esverdeado do Sacré Coeur brilhava incessantemente sobre minha cabeça, era um lugar realmente lindo, combinava perfeitamente com Ellen e com todas as mulheres lindas que estavam ali. A avistei sentada numa mesa perto de uma pintura famosa, caminhei até lá.

- Olá, desculpe se atrasei alguns minutos.

- Tudo bem Keith, eu acabei de chegar também - disse ela, sorrindo para mim. Como era reconfortante aquele sorriso.

- Sabe você me parece menos bruto fora da empresa.

Aquela frase me deixou completamente sem jeito.

- Ah, e- eu tenho que adotar o jeito de ser de um bom chefe... Não posso pegar leve com os funcionários. Parece meio chato, mas é assim que tem que ser.

- Admiro isso em você.

- Escuta, sem querer ser chato, mas você nunca me deu atenção e agora se mostra uma admiradora minha, estou estranhando isso.

Antes que ela falasse algo, fomos interrompidos pelo garçom que perguntava o que iríamos querer como prato de entrada.

- A salada da casa, por favor - pedi.

- O mesmo para mim - disse Ellen.

A noite se seguiu à base de muito vinho e comida, acho que eu já tinha bebido bastante, estava começando a ficar tonto, as palavras de Ellen demoravam alguns segundos a mais para entrar em meus ouvidos. Comecei a soltar uma série de elogios a ela, inclusive disse que ela tinha uma bunda perfeita, Ellen não se chateou, pareceu ter gostado, apenas sorria, me deixava falando feito um idiota.

Quando ela me ajudou a pagar a conta no fim da noite, caminhamos até a entrada brilhante e florida do restaurante. Ela estava deslumbrante com aquele vestido vermelho, combinado com o batom em seus lábios, aquela boca sexy e irresistível.

Encaramos-nos por um bom tempo, sem dizer nada um para o outro. Nossos corpos se aproximaram lentamente, aqueles lábios agora seriam meus, iria sentir o sabor da mulher que desejei ter há tanto tempo, nossos rostos estavam a uns poucos centímetros um do outro, meus lábios en...

Acordei apavorado, uma explosão parecia ter acontecido na sala, pude ouvir vários passos lá, pessoas resmungando coisas, será que estavam tentando me roubar?

Olhei para mim mesmo no espelho que ficava de frente à cama, estava com aquele casaco velho, minha cara estava horrível, “Meu Deus” falei para mim. Um grupo de policiais uniformizados agora brandia suas armas em minha direção.

- Senhor Keith Gallagan, o senhor está preso acusado de assassinato em massa!

O perfume de Ellen, o dia e a noite perfeita, apenas devaneios de um assassino. Keith Gallagan, o caixa de supermercado que vivia sozinho em uma pequena casa, havia gastado todo o dinheiro que possuía com armas e munições, para se vingar daqueles que o humilharam.


“Ah, a velha e chata realidade...”

Tique Taque

A jovem moça dormia agoniada com o chato ruído do relógio da cozinha, o tique taque de todo santo dia. Rolava para a direita, em seguida para a esquerda, à procura de uma boa posição, mas nenhuma parecia boa o bastante. Suava, o ventilador não estava ventilando o suficiente para livrá-la do calor infernal de seu quarto. Ela cravava as unhas com força no colchão na esperança de que aquilo a livrasse daquele turbilhão de sensações ruins. O relógio de parede sempre no seu tique taque rítmico. A moça queria ir até lá e quebrar o objeto, mas ela sabia que aquilo apenas iria prejudicá-la.

Já estava exausta, a moça teve seu momento de paz, seus pensamentos se esvaíam aos poucos, o tique taque do relógio agora ficava cada vez mais distante. A jovem adormeceu.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, a mulher foi até a cozinha ter sua vingança, iria quebrar aquele troço, fazê-lo em pedaços, mas ao encarar seu inimigo ela percebeu que havia algo de errado, ele estava parado, na hora doze. Notou que estava se sentindo um pouco estranha, parecia mais leve do que já era. Virou-se para trás e viu algo que a deixou preocupada, seu remédio para o coração estava ali em cima do balcão, ela tinha esquecido de tomar no dia anterior.

Recordou que tinha chegado em casa cansada e se jogado na cama de seu quarto, havia cochilado e acordado no meio da noite, agoniada, desesperada e se rebatendo na cama.

Achou estranho que agora estivesse bem, sem nenhuma seqüela da crise do dia anterior. Voltou para o quarto, deitar na cama ajudaria ela a pensar melhor.

A jovem moça agora via a si mesma deitada na cama, pálida como seu lençol branco, a boca aberta e os olhos revirados. O relógio não mais tique taqueava.



quarta-feira, 10 de março de 2010

O Cão e a Cruz (Parte Final)

A cada semana a besta fazia novas vítimas e a população estava cada vez mais furiosa. Dona Joana já havia sido levada, em uma das noites, somente partes de seu corpo foram encontradas jogadas pela cidade, grande parte da rua das Alamedas foi tingida de vermelho. Ciro, irmão de Ronaldo, disse ter visto uma silhueta canina próxima à capela, ao ter olhado pelas frestas da janela, em uma noite de sexta-feira.

Em uma tarde de segunda, Ronaldo tinha resolvido procurar César, um grande conhecedor das lendas locais, também um contador de histórias, parece que sabia de muitas coisas a cerca dos lobos humanóides. O padre estava de frente à uma casa amarela, com os olhos semi cerrados devido ao calor, na frente do casebre, um senhor balançava-se para frente e para trás em sua cadeira de balanço, fumando cachimbo.

- Com licença, é aqui que mora o César? - Perguntou Ronaldo.

- O César? Sou eu - disse o velhote, tossindo. Ele tinha uma cara murcha e larga, o narigão enrugado se destacava em sua face de pele escura.

- Boa tarde senhor, eu sou Ronaldo, o padre da capela de São Miguel - disse estendendo a mão para que o velho a apertasse. Após o aperto de mão, César olhou atentamente nos olhos do padre.

- Eu conheço você, já assisti a uma missa sua, prega bem a palavra do Senhor.

- Obrigado.

- A cidade pensa que tu és a besta, está sabendo não é? Olham feio pra ti.

- Claro, mas o Senhor me protege de todos os males. Foi justamente por isso que vim te procurar, para saber mais sobre a besta.

- Ah, meu caro, posso lhe dizer bastante coisa, meu pai já encontrou um lobisomem quando era jovem, teve sorte de escapar com vida, ele passou a vida pesquisando sobre esta maldição, me passou tudo o que podia.

- Conte-me.

- Sente aí nesta cadeira - o velho aguardou um momento, esperando o padre se acomodar na outra cadeira de balanço. - Bem, vamos começar sobre como se deve deter a besta, uma das maneiras é colocando cera de vela usada em três missas de domingo, essa você já deve saber.

- Sei sim. Na verdade eu não quero matar a besta sabe, apenas quero me proteger.

- Entendo, realmente não cairia bem para um padre matar alguém. A maldição do Kumacanga ou lobisomem, faz com que a pessoa sinta um grande desejo de comer carne, comida salgada e traz uma sede incontrolável, a criatura precisa se alimentar de sangue para viver, se encarrega de obtê-lo quando está transformado. Diz a lenda que quando uma mulher tem sete filhos homens, o sétimo será um lobisomem, ou então quando a mulher se amanceba com um padre. A maldição se desenvolve quando a criança completa treze anos de idade.

Ele apenas havia confirmado o que já sabia, “treze anos de idade”, era horrível saber daquilo, sentia o olhar canino quando fechava os olhos, era aterrorizante, aquilo o atormentava há alguns anos. Sete filhos, a carne, o sangue, o padre, tudo agora estava confirmado, a lenda não era apenas uma lenda, de fato existia e estava mais perto de Ronaldo do que qualquer um poderia imaginar.

- Já ouvi o suficiente, vou embora, muito obrigado César - disse Ronaldo levantando-se.

O velho não disse nada, apenas ficou olhando para o padre fixamente, franzindo seu cenho, a fumaça do cachimbo cobrindo-lhe a face.

A sexta-feira havia chegado novamente, a maldita sexta. O povo da cidade estava decidido dessa vez, em invadir a igreja, para pegar Ronaldo no flagra, para acharem a besta. Perto do anoitecer, os cidadãos brandiam suas tochas, pás e enxadas rumo à capela, gritavam indignados, “Isto vai ter um fim esta noite!”,” A besta não irá mais nos perturbar!”,”Não haverá vítimas em nossa cidade esta noite!”. Chegando na porta da capela, o mutirão arrombou o portão e adentrou no local, o altar alaranjado pela luz das tochas, o silêncio reinava ali, mesmo com o grito de todas aquelas pessoas, era um cenário sombrio, todos haviam se calado, agora vasculhavam o lugar em busca de Ronaldo.

Ao chegarem no quartinho em que dormiam os irmãos, encontraram apenas José, pálido e ofegando em sua cama, estava muito assustado com a invasão repentina daquelas pessoas na casa do Senhor.

- José! Por Deus, onde está o seu irmão?

- Eu não sei.

- Ora, não precisa mentir, estamos aqui para o seu bem, para te salvar das garras da besta, diga para nós.

- Estou falando a verdade! Não sei!

Todos os que estavam no quarto olhavam um para o outro, incrédulos, iluminados somente por suas tochas. Na visão de José os rostos de todos demonstravam que estavam sedentos por sangue, o ódio pela besta havia contaminado todas aquelas pessoas com um instinto assassino.

- Vamos embora, ele não está aqui, pobrezinho do irmão dele, abandonado neste quartinho escuro... Venha conosco garoto.

- Não, eu não quero. Aqui estou mais seguro, na casa do Senhor.

- Que seja. Hoje iremos achar a fera, custe o que custar - as pessoas agora evacuavam a igreja.

Nas ruas desertas da cidade, podia-se ouvir apenas o vento e os passos das pessoas revoltadas que vagavam pela cidade em busca do lobisomem. Durante a caminhada, um dos homens disse ter visto uma silhueta correndo para o matagal, logo os caçadores adiantaram-se, aquela era a chance de ouro. Eles se separaram prontos para armar uma armadilha para a besta, cercariam o bicho em um círculo, o deixaria sem saída.

Não tardou para que encontrassem o homem lobo, agora a criatura rosnava para os homens armados que o flanqueava, sentia-se ameaçado, de fato estava muito encrencado. A saliva deslizava por sua enorme boca canina, repleta de dentes afiados; os pêlos escuros eram escassos em algumas regiões do corpo e também era mal distribuído; as orelhas pontudas lembravam chifres e os olhos amarelados eram intimidadores. O monstro estava sedento por sangue e carne humana, seus instintos o dominaram, o cão agora pulava em cima de um dos caçadores com extrema rapidez, o homem nada pôde fazer, estava sendo devorado, o sangue jorrava por todos os lados, tornando as plantas antes azuladas com a luz do luar, vermelhas, um vermelho escuro e denso; logo os gritos do homem cessaram, quando a besta o mordeu na jugular. Os outros que observavam a cena chocados, agora não viam outra solução senão atirar no bicho e assim fizeram. O lobisomem fora fuzilado, perfurado pelas balas sagradas, untadas com as velas da Igreja de São Miguel, em pouco tempo caiu duro na grama, os olhos perdendo a cor amarelada, a língua pendendo para fora da boca, a besta foi abatida.

Ronaldo notando a confusão que vinha lá de cima, saiu de seu esconderijo, que ficava próximo à sua cama, um pequeno porão que havia feito para se proteger da besta na noite. Reunindo toda a sua coragem, levantou o alçapão lentamente, olhando para todo o ambiente, seu irmão havia sumido. Foi andando até a cozinha, do lado de fora era possível ouvir gritos, mas não eram gritos de horror e sim de comemoração. Chegando na praça da cidade, encontrou os cidadãos reunidos ao redor de um poste, em que no alto uma criatura lupina pendia, balançando de um lado para o outro, presa com uma corda grossa no pescoço, o sangue da besta ainda escorria por seu corpo, pingando e criando uma poça de sangue abaixo dela.

O padre foi tomado por uma sensação horrível, caiu de joelhos e começou a chorar, isto fez com que todos se calassem e olhassem para trás. Ao verem Ronaldo ficaram perplexos, pensavam que ele era a fera, mas se ele estava ali ajoelhado, quem era a maldita criatura? Só o amanhecer os daria a resposta.

Todos foram para suas casas, alguns tentavam consolar Ronaldo, mesmo não sabendo o motivo porque tanto chorava, devia estar feliz pelo fim da besta. O padre ficou ali, olhando para a pobre figura do monstro, pendendo tristemente no poste, durante toda a madrugada.

Quando os raios de sol começavam a surgir no horizonte, a figura de José, o sétimo filho de Dona Chica, filho do antigo padre da cidade, aparecia onde outrora estava a besta. O querido e frágil irmão de Ronaldo havia completado treze anos naquele dia.



FIM.

O Cão e a Cruz

Dona Chica teve sete filhos, o sétimo havia sido com um padre de uma pequena cidade no norte do Pará, onde atualmente residia, deitada em seu caixão, na sua simples cova. A cruz de madeira com seu nome, fincada sobre o túmulo, balançava quando o vento forte batia, mas nunca caía, assim como a velha fora em vida.

O pai da sétima criança fugiu para outro estado quando o menino mais velho atingiu a maioridade. No dia em que foi embora, o homem parecia assustado, não tinha se despedido do filho, o sétimo de Dona Chica, nem dos outros que ela tivera com os outros homens de sua vida. O padre deixou sua igreja, a pequena e simples capela branca, para os meninos da família, um deles havia assumido o sacerdócio

Sem ter mais pai algum, a mãe, Francisca, teria de cuidar das sete crianças sozinha, eram sete meninos. Quando Ronaldo, filho de Francisca, virou o padre da igreja do vilarejo, ele passou a morar na capela, junto com seu irmão José, que precisava de bastantes cuidados, pois tinha a saúde frágil, era pálido e magricela.

Em uma noite de sexta-feira, enquanto fazia o prato que seus filhos mais gostavam, o Tacacá, uma sopa amarelada com goma e camarão, Dona Chica foi abatida por um mal estar repentino e em seguida atacada por alguma coisa que lembrava um cão, não teve tempo de reconhecer, quando menos percebeu, já tinha passado desta pra melhor. A partir desse dia, surgiram rumores de que uma fera sempre era avistada correndo durante as madrugadas de sexta-feira, atacando os desprevenidos. Muitos diziam que um lobisomem tinha chegado à cidade e se instalado por lá. Todas as sextas, alguns caçadores saíam à procura da besta para matá-la.

Após a longa missa da tarde de Domingo, Ronaldo estava com uma vontade imensa de comer carne, de preferência mal passada, sua preferida; foi até a cozinha para prepará-la, para ele e para seu irmão José. O calor estava insuportável, nas ruas a areia alaranjada era levada pelo vento, formando verdadeiras nuvens arenosas, que invadiam as casas alheias, o que incluía a capela também. Ronaldo sabia que após o almoço teria de cumprir sua rotina limpando a entrada da igreja, pondo a areia para fora.

Bem alimentado, tratou de conversar com seu irmão, que passava o dia de cama, José adorava ouvir as histórias de Ronaldo e também a palavra do Senhor, se sentia a pessoa mais feliz do mundo quando o irmão o vinha visitar no quartinho atrás da capela, onde os dois dormiam. Após conversar com José, o padre ia para o velho e pequeno confessionário de madeira, atender os fiéis. Todos os dias Ronaldo ouvia confissões absurdas, imaginando se realmente servia de alguma coisa para estes cidadãos ouvir a palavra de Deus, mas ele sabia que não devia questionar os poderes da fé e assim seguia com seu trabalho sempre bem executado: “reze dez ave marias e quinze pai nossos”.

Saindo do confessionário, o suor escorrendo por seu rosto, Ronaldo escuta alguém o chamando, ao se virar vê que era uma das fiéis mais fervorosas da igreja, uma colega querida dele.

- Dona Joana! O que fazes aqui? Ainda falta muito para a missa das seis.

- Ah, nada padre, só vim conversar com o senhor.

- O que me contas?

- O senhor sabe que nos últimos tempos a fera tem atacado com mais frequência? Estou com medo Ronaldo.

- Não há o que temer minha amiga, o poder do senhor protege quem segue a palavra. Sente-se vou trazer um copo d’água para a senhora, deve estar seca de tanta sede.

Enquanto tirava a garrafa da geladeira e apanhava o copo, Ronaldo refletia sobre o que Joana havia dito, “a fera tem atacado com mais frequência”, na verdade ele tinha muito medo da besta, mais do que qualquer um daquela cidade, tinha certeza, tremia quando lhe falavam da criatura, mas tentava sempre demonstrar firmeza e coragem e até agora tinha conseguido, todos ficavam contentes em estar perto dele, se sentiam seguros. A água agora transbordava do copo de vidro, Ronaldo resmungava.

Levando a água para a mulher, ele foi surpreendido por uma pergunta.

- Padre, não pude deixar de notar esses rasgos em sua roupa, o que foi isso?

A mão de Ronaldo fraquejou e agora o copo havia se transformado em estilhaços quando caiu no chão.

- Oh meu deus! - Exclamou a mulher.

- Não se preocupe Dona Joana! Não se preocupe! - Falava Ronaldo rapidamente, enquanto já catava os restos do copo - Eu só estava desatento, não use o nome do Senhor em vão.

- Desculpe padre, força do hábito.

- Sim, a pergunta que fez pra mim. Foi apenas um acidente de ontem, eu estava passando pela porta quando minha blusa ficou presa em um pedaço de madeira solta e acabou rasgando.

- Ah, acontece né?

- Vou na cozinha pegar a água da senhora - avisou, com os cacos de vidro agora em sua mão.

- Não senhor, não precisa, já estou indo, não se incomode. Vou para casa agora, tenho que preparar o café e depois me arrumar para a missa.

- Certo senhorita, te vejo mais tarde.

- Até.

Assim Dona Joana saía da capela, questionando acerca do comportamento estranho de Ronaldo, que não só tinha derrubado o copo como havia ficado da cor das paredes da igreja.

O padre agora respirava aliviado depois de a mulher ter ido embora, por pouco havia se safado de contar o verdadeiro motivo daquele rasgo, teve sorte por não estar com suas outras camisas que estavam em pior estado. A noite estava chegando, e com ela o compromisso inadiável de Ronaldo, foi ao seu quarto trocar de roupa, aproveitando para conversar novamente com o irmão.

Os outros irmãos de Ronaldo haviam crescido com os cuidados dos vizinhos, após a morte da mãe. Eles vinham sempre frequentar as missas do querido irmão ou então tomar um café com ele e José no fim da tarde. Apesar das dificuldades que passaram, todos eles eram muito unidos e dotados de uma personalidade bondosa.

Ronaldo tinha celebrado a missa com excelência, sua satisfação em ajudar as pessoas o fazia uma pessoa realizada, mesmo com suas preocupações, fardo que acompanha os seres mortais. Agora ele cumprimentava os fiéis e os irmãos, José também assistia as missas quando podia.

- Ronaldo meu amigo! Como está a vida? - Perguntava o prefeito da cidade.

- Está ótima Carlos, obrigado - respondeu Ronaldo, o prefeito agora dava tapinhas no ombro do padre enquanto ia cumprimentar os outros.

- Meu grande irmão! - Cumprimentou um dos membros da família.

- Rafael! - O padre abraçava o irmão.

- Quando vai voltar a fazer missas nas sextas hein? - Perguntava Rafael.

- Tu sabes que é um dia perigoso não é? As pessoas não estão mais saindo de casa com medo da besta e eu não gostaria de imaginar aquela fera entrando na igreja em plena missa. Estou me protegendo como posso, a mim e a todos.

- Espero que peguem logo esse lobisomem, ele matou nossa mãe, é o que mais desejo, a morte do bicho, estou tentando ajudar os caçadores a pegá-lo nas noites de sexta.

Ronaldo suava frio após ter escutado o irmão dizendo “é o que mais desejo, a morte do bicho”, pegou um lenço e rapidamente limpou a face.

- Irmão, tu não deves desejar a morte dos outros, nas sextas ele pode ser um bicho, mas nos outros dias é humano, como todos nós - advertiu o padre.

- Desculpe irmão, sou apenas um simples pecador.

- É uma pessoa de ótimo coração também, pecadores todos nós somos.

Às oito da noite todos saíam da igreja e o padre arrumava o altar, retirando o que devia ser limpo e varrendo-a. Antes de dormir, pedia ao pai que zelasse pela saúde de José e pela segurança de todos da pequena cidade, que os livrasse da besta.

Todas as noites de sexta-feira, Ronaldo sumia, ninguém da cidade sabia onde ele estava, aqueles que tinham coragem de sair naquele momento, geralmente mendigos ou pessoas sem teto que vagavam sem rumo pela cidade, podiam ouvir choros vindo da casinha atrás da capela, provavelmente era o irmão do padre, que se sentia solitário ali sozinho na noite obscura.

Após notarem que Ronaldo não estava na cidade nas sextas, o povo passou a desconfiar dele, “quem diria, o padre, justamente o padre da nossa cidade suspeito de ser a besta” comentavam os habitantes indignados. Os caçadores vasculhavam o matagal que cercava a cidade na noite escura em busca de pistas ou da própria fera, todos eles armados até os dentes.

De três em três domingos, eles pediam a Ronaldo que lhes deixassem pegar a cera das velas que foram utilizadas somente nas missas de domingo, segundo a lenda, o lobisomem só poderia ser morto com bala untada com cera que queimou em três missas de domingo ou em Missa-do-Galo. Agora, suspeitando que Ronaldo era a fera, os caçadores olhavam de um jeito estranho para ele e o padre sentia isso, havia medo e receio nos olhos deles.


Continua...

Boa Noite Vovó!

Em meu quarto escuro, banhado pela luz do luar, eu dormia muito bem após um ótimo dia, até ser acordado no momento em que beijaria a mulher da minha vida, "Que o maldito que me acordou seja amaldiçoado sete vezes!" pensei furioso. A porta rangia, um som agudo e irritante, virei o rosto para lá, forçando a vista, uma silhueta muito conhecida estava parada ali. Aos poucos fui reconhecendo cada detalhe do que estava acontecendo: uma bengala, uma faca, pantufas...

- Vovó? - A maldita não me respondia, mas eu tinha certeza que era ela, embora seus olhos outrora verdes estivessem sem cor e sua pele mais pálida do que de costume (uma tarefa muito difícil para alguém que usa 10 quilos de maquiagem no rosto).

A velha gritou enquanto corria em minha direção, o mais rápido que pôde, com sua bengala, fazendo um barulho engraçado, como se um anão usando um sapato de madeira corresse pelo quarto; a faca estava pronta para desferir o golpe. Desviei da facada por muito pouco, subestimei a vovó. Durante o ato o braço dela tinha estalado e o punhal havia caído no chão. " Vovó! Pirou de vez!?", ela me respondia com grunhidos indecifráveis, resmungos de uma velhota, agora tentava me acertar com a bengala, a cada tentativa se desequilibrava e se apoiava no primeiro suporte que via pela frente. Me vi obrigado a reagir, soquei o queixo da vovó, sua dentadura voou e caiu dentro do meu aquário; ela revidava com algo inesperado, seus seios que quase batiam no chão agora vinham como um chicote de encontro a meu rosto, me atingiram em cheio e fui abatido, tive sorte por aquele troço não produzir mais leite. Rapidamente afundei meu punho no estômago da velha, me arrependi, pois tomei um banho de vômito. Vovó ao se curvar, dera um jeito na coluna.

- Dor na coluna vovó? - Perguntei sarcasticamente - Deixe-me dar um jeito!

A segurei pela banha e pelo vestido e a joguei de encontro a janela. A anciã agora caía do segundo andar da casa e se estatelava no asfalto.

Não sei o que havia dado na vovó, mas boa coisa não era.

Que Deus lhe Pague

Um fim. Enfim, a última palavra que eu pude ouvir fora:não; uma negação. Fui daquela para melhor com um sentimento de frustação, morto pela vítima, destinado ao inferno do cão. Abri os olhos da alma, observando com calma toda aquela serenidade atípica, a alva cor que se espalhava por todo o cenário. Eram nuvens? Era um sonho? Um homem velho e barbudo me chamava. "Meu caro, o que tu fazes aqui?", velho idiota, se ele não sabia, como eu saberia? Me mandou entrar pelo portão dourado entre a parede branca. Andando pelo vazio sereno eis que escuto uma voz, vinha de todos os cantos, "Péricles, não foi um bom filho, não posso deixá-lo ficar". Todo o branco avermelhou-se, estava quente como o inferno, "ah não, era realmente a casa do cão", os diabinhos vinham até mim sorrindo e lambendo os beiços. Cada um agarrava uma parte de meu corpo e com uma facilidade tremenda as mutilava; braços, pernas, tronco e cabeça, os monstrinhos se divertiam a beça...

Acordei daquele pesadelo horrível, fiquei sentado na cama, enxugando o suor em minha testa. Não estava me fazendo bem matar jovens toda semana, já não bastava a polícia sempre me torrando o saco, como eu iria realizar os desejos de mamãe assim?

Me levantei e fui lavar o rosto, acabei vomitando na pia, não estava nada bem de saúde. Vesti meu casaco, pus o facão no bolso interno e saí para a rua fria. Perto da avenida, uma velha tentava atravessar a pista, de repente desequilibrou-se e eu fui movido por algo que não pude explicar, sem pensar duas vezes, fui ajudá-la. Ao me aproximar, a levantei e a coloquei na calçada, ela me agradeceu sorrindo. Foi uma sensação boa para mim, lembrava o sorriso de minha mãe.

- Não! - exclamou a velha com os olhos arregalados.

A velhinha tomou um banho de sangue quando fui levado pelo caminhão em alta velocidade, aquela expressão horrorizada na face dela foi a última coisa que vi em vida.

"Está quente aqui", eis o preço que pago por uma boa ação.

Aracnídea (Parte Final)

- Para onde iremos querido?

- A casa da minha mãe é bem grande, vamos ficar por lá até que encontremos outra casa - respondeu meu pai.

- Está bem... Peter e Jackson, os dois, vão para o quarto, arrumar as coisas, amanhã vamos embora - completou mamãe.

Meu quarto estava uma verdadeira bagunça, eu não tinha a menor coragem de ficar sozinho arrumando meus brinquedos e minha cama. Peguei uns brinquedos que estavam no chão e os coloquei de volta no baú. Com meu irmão no quarto eu não podia temer a nada, então aproveitei para arrumar a cama, mesmo sabendo que aquela era a minha última noite na casa, não queria perder o hábito.

A terceira noite havia chegado e trazia com ela os meus medos. O escuro sempre me assustou, as pessoas falam que não devemos ter medo dele, porque não tem nada de mais, mas gostaria de saber porque todas as piores coisas só acontecem à noite e por que as malditas aparições também só aparecem ao anoitecer. Agora eu sabia o motivo dos humanos terem medo do desconhecido.

Evitei ficar sozinho naquela noite. Não sei por que, mas aquelas coisas só perseguiam a mim quando eu não estava acompanhado de ninguém, meu irmão não dera sinal algum de que algo estava pertubando ele também.

Já era a hora de dormir, eu e meu irmão fomos para o quarto após termos escovado os dentes. Tudo parecia bastante tranquilo, a mulher aranha não tinha aparecido nenhuma vez e eu estava achando que dormiria em paz. Meus olhos cerravam-se quase automaticamente devido ao sono e em poucos minutos pude contemplar a imagem de minha mãe em meus sonhos, ela estava em um campo de flores amarelas dançando com uma bailarina, o rosto da mulher aracnídea apareceu de repente.

Abri os olhos assustado, alguém gritava no meio da madrugada, uma mulher, mamãe. Meu quarto estava sendo iluminado apenas pela luz fraca do abajur, via meu irmão sentado na cama com os olhos arregalados, eu estava querendo saber o que estava acontecendo, pondo os pés no chão gelado, saí da cama.

Chamei meu irmão para me acompanhar, Jackson apesar de mais velho, era mais medroso do que eu. Abri a porta devagar, o corredor estava coberto com uma escuridão quase total, não me atrevi a olhar para o quarto no fim dele, aquele em que o tio Les dormiu, sei que eu não iria gostar nem um pouco do que veria se virasse a cabeça para a direita, por isso mantive meu corpo imóvel, apenas olhando para a parede a minha frente, iluminada pela luz alaranjada que saía do meu quarto.

- Mano, pega a lanterna - pedi.

Jackson foi até o baú e o vasculhou, achou a velha lanterna à pilha e a trouxe para mim, saimos devagar do quarto, ele andava atrás de mim, com certeza estava sentindo o mesmo que eu, que alguém olhava para ele lá do quarto do fundo do corredor, obviamente hesitamos em olhar para trás.

Abri a porta do quarto de minha mãe, ela e meu pai olharam assustados para mim.

- O que foi pai? - perguntei.

- Sua mãe viu uma coisa horrível filho - papai abraçava minha mãe, que chorava sem parar.

- O que?

- Nada filho, nada. Podem dormir hoje com a...

A porta do quarto bateu com força e todos se assustaram, depois a maçaneta girou sozinha e a porta abriu devagar, rangendo. Lentamente, a cara da bailarina sem expressão surgia na fresta.

- Mas que... - meu pai perdeu a voz.

Eu, meu irmão e minha mãe berrávamos de medo. A criatura não entrou no quarto apenas retornou a cabeça de volta à escuridão, devagar, assim como apareceu.

A porta do guarda roupa dos meus pais abriu e de dentro saía uma menina loira de vestido branco, rapidamente todos se sobressaltaram e correram para o corredor, em completo estado de pavor. A adrenalina preenchia todo meu corpo, eu suava frio enquanto sentia um calor irritante. Todos desceram a escada, enquanto eu escorregava pelo corrimão. Lá embaixo percebi que a porta do quartinho debaixo da escada estava aberta.

Bodes chifrudos humanóides saíam um a um do pequeno cômodo, todos pararam em círculos, suas gargantas sangravam sem parar, o sangue escorria pelo chão. Tomados pelo terror, minha família agora tentava abrir a porta, sem sucesso, alguma coisa nos impedia de abrí-la. Os caprinos já não estavam mais lá, agora o espetáculo havia começado no hall de entrada, uma música de ninar, daquelas que saem de caixinhas, tocava no salão, enquanto a bailarina, aquela que eu conhecia tão bem, saía do quartinho e começava a dançar, uma apresentação que poderia ser bela, não fosse o fato de que a mulher tinha um rosto de plástico, inexpressivo, e que aquilo não combinava em nada com o ambiente.

Todos nós assistíamos apavorados ao show, a bailarina agora fazia malabarismo com a própria cabeça, a tão conhecida cabeça aracnídea. Sombras passavam pelas janelas, gritos podiam ser ouvidos nos quartos do andar de cima, a menina de vestido branco chorava na cozinha e risadas pareciam sair da tapeçaria no centro do hall. Não aguentávamos mais tudo aquilo, não podíamos fazer nada além de contemplar aquele show de horrores vindo diretamente do mundo dos mortos. Chorávamos e berrávamos, pedindo para que aquelas coisas fossem embora, fechei os olhos com força, uma enxaqueca tomava conta de meu cérebro, de repente tudo parou.

Quando abri os olhos não havia mais nada no hall, apenas eu e meu família. Olhei para o relógio, eram cinco e meia da manhã, o primeiro e fraco raio de sol brilhava no horizonte. A porta atrás de nós, agora abria, gentilmente. Fomos para fora da casa, meu irmão foi para o balanço, enquanto eu e meus pais observávamos o casarão.

- Bom, parece que acabou - comentou meu pai.

Mais tarde no mesmo dia, apanhamos nossas malas e fomos para a casa da mãe do papai, abandonando aquela casa cinzenta para sempre.

Em meus quinze anos, voltei para rever a velha casa mal assombrada, eu e um grupo de amigos, que não acreditavam em minhas histórias sobre o lugar, muitos deles estremeceram só de ver o casarão. Nesse dia, encontrei um velho senhor que se encontrava parado observando a casa também, resolvi falar com ele.

- Bom dia senhor, conhece a casa?

- Olá meu jovem, se a conheço? - O velho riu - Sou o dono dela.

- Dono!? O senhor tem quantos anos?

- Esqueça jovem. Eu sei que morou nela, é o pequeno Peter não é?

- Como sabe? Nunca vi o senhor.

- Ah, mas eu o vi, seu pai me mostrou uma foto da família enquanto conversávamos para entrar em acordo com a venda da casa.

- Nossa, que memória hein?

- A idade me tirou muitas coisas mas não a memória, sou um velhote diferente.

- Senhor... Você sabe que a casa...

- É mal assombrada, eu sei.

- Sabe?

- Deixe-me contar uma história rapaz. Eu e minha esposa éramos muito jovens quando mandamos construir esta casa, tínhamos em mente muitos planos bons para o futuro, o primeiro deles, um filho. Nossa menina, Amelie, tinha nascido, os olhos dela eram tão claros e os cabelos eram loiros como os meus, na época que eu os tinha claro. Eu estava me dando muito bem no trabalho, ganhava cada vez mais e assim ia aumentando o tamanho da casa. Com o dinheiro também viajávamos bastante. Em uma dessas viagens, compramos uma tapeçaria no mercado negro, idéia da minha mulher, ela era maluca. A ilustração era bonita, mas tenho que admitir que era de muito mal gosto, várias pessoas desfiguradas olhavam para um lugar em comum, onde não tinha nada. Pouco tempo depois de termos chegado de viagem, minha esposa teve um ataque cardíaco e morreu, depois de alguns dias, minha filha havia caído da escada e tinha falecido também. Morando sozinho, passei a ver Amelie e Nora, minha mulher, andando ou dançando pela casa, o sonho dela era ser uma grande bailarina. Certo dia eu fui olhar a tapeçaria e adivinhe só, minha mulher e minha filha estavam nela, ocupando o lugar que estava vazio, eu achava que estava ficando louco, então me mudei.

- Então... Tudo aquilo... Meu deus...

- Acho que agora você deve estar associando as coisas meu jovem.

- Espere um pouco, já volto!

Fui até o casarão e abri a porta, que estava mais velha do que nunca. No hall de entrada olhei para a tapeçaria, todos os rostos deformados olhavam para a figura de uma bailarina e sua linda filha.



FIM

Aracnídea (Parte 2)

Todos pareciam bastantes tranquilos enquanto comiam as tradicionais panquecas de minha mãe, estava começando a achar que apenas eu estava paranóico e que aquele dia certamente seria pior do que o anterior.

A campainha havia tocado, Tio Les tinha chegado. Minha mãe pediu para que meu irmão fosse abrir a porta, ele por ser mais velho sempre era o mais cobrado. Aborrecido, ele foi e eu o segui até a porta que levava ao hall de entrada.

Tio Les nunca mudou, aquele cabelo loiro extremamente arrumado, que mais parecia uma peruca, estava parcialmente coberto por uma boina marrom. Ele nunca tirava o charuto da boca, quando deixava de fumar um, logo pegava outro, mesmo que não fosse tragá-lo. Sorriu para meu irmão com aqueles dentes amarelados, um sorriso nada sincero, que estava sendo devidamente retribuído.

- Olá meu jovem! - cumprimentava-me.

- Oi tio Les.

- Les Paul meu jovem, Les Paul.

Provavelmente por estar cansado de tanto disfarçar, deixou a mala perto da entrada da casa e se dirigiu logo à cozinha.

- Hmm, esse cheiro não me engana! São as panquecas da Laura! - Gordo do jeito que era, dava para entender como ele tinha um olfato tão apurado.

Pude ouvir as vozes na cozinha, meus pais o cumprimentando. Acho que apenas eu e meu irmão entendíamos que aquele gordo nos visitava apenas para suprir a sua necessidade de encher a barriga que ele tratava com tanto carinho. Apesar de tudo, o tio Les era um homem bem humorado, sabia como nos fazer rir, todas as vezes que nos via trazia novas piadas e agora já estava contando-as na cozinha, com um pouco de dificuldade, pois sua boca já estava saturada de tanta panqueca.

- ... E adivinhem só! O homem havia comido todo o cocô pensando que era chocolate! - A risada alta dele ecoava por todo o cômodo. Meus pais riam juntos, mas eu não vi muita graça na piada, o tio Paul já tinha contado melhores.

Após ter comido quase todas panquecas, por pouco não devorando a minha também, o tio Les estava na difícil tarefa de levantar o traseiro e manter-se de pé. Depois desse feito incrível, ele voltou ao hall de entrada, para buscar as malas.

- Laura! Onde eu vou dormir!? - Gritava o tio Les, lá do hall.

- Suba as escadas e entre no último quarto do corredor!

O último quarto do corredor... O mesmo em que eu tinha visto uma pessoa entrando na minha primeira e maldita noite, não faria questão de contar uma coisa dessas para o tio Paul, até por que ele não acreditaria. Les com certeza não iria dormir bem naquela noite e para a infelicidade dele os dias só tinham cerca de 12 horas de claridade.

Meu tio já tinha guardado as coisas no quarto e agora descia com seus passos pesados, perguntando se o almoço iria demorar ou não para sair. Subi até meu quarto para pegar uns brinquedos, estes estavam guardados num grande baú de madeira. Quando o abri, fiquei procurando por meu boneco favorito. O quarto estava bastante silencioso, qualquer ruído era perceptível.

A porta havia fechado e eu ouvi passos leves se dirigindo em minha direção.

- Mãe? A senhora viu aquele boneco que eu gosto? - Perguntei, estava concentrado no que estava fazendo.

Vendo que ela não tinha respondido, me dei conta de como estava frio ali.

- Mamãe?

Criando coragem para ver o que me esperava, lentamente me curvei, tinha certeza de alguém me observava ali parado, sentia aquela presença fortemente. Não havia ninguém lá, meus pêlos estavam arrepiados e meus pés dormentes. Corri em direção à porta, não estava mais interessado em brinquedo algum, mas parece que eles estavam interessados em mim, uma mão de palhaço saía do baú, mexendo os seus três dedos vermelhos, em seguida aparecia a face horrenda do brinquedo, aquela maquiagem negra ao redor dos olhos infantis e o sorriso macabramente grande. Agora o pequeno palhaço descia com trabalho do grande baú, parecia difícil para ele ficar de pé; após manter o equilíbrio, ele veio andando até mim, bem devagar, caminhava como um bebê aprendendo a andar, as pernas de algodão, tortas.

Eu tentava abrir a porta, mas parecia que ela estava emperrada, como se alguém estivesse segurando a maçaneta do lado de fora, o boneco estava cada vez mais próximo de mim, sempre sorrindo. Nunca gostei de palhaços, mas os pais não entendem os temores dos filhos, haviam comprado este boneco para mim, como se toda criança gostasse de palhaço. Não pensei em outra opção além de pedir socorro.

- Mãe! Socorro! Socorro!

Não sei se ela estava me ouvindo, mas eu gritava o mais alto que podia, enquanto o palhacinho com cabeça de porcelana, agora rastejando, vinha em minha direção. Pude ouvir minha mãe e meu pai agora do outro lado da porta, tentando abrí-la, enquanto gritavam desesperados.

O palhaço estava quase encostando as mãos em mim.

- Não! Sai daqui! Não! Não! Sai!

Eu suava como se tivesse dado duas voltas no quarteirão. Por reflexo chutei com toda a força a cabeça do boneco, esta explodiu, como se fosse uma cabeça humana, enchendo o quarto de massa cefálica e um odor horrível de morte, o pequeno palhaço agora agonizava no chão, enquanto saía um líquido vermelho denso e gelatinoso de onde outrora estava sua cabeça.

Minha mãe conseguiu abrir a porta, me encontrou chorando no chão em frente ao palhaço.

- Filho o que houve!? O que foi isso!? - Vendo que eu não respondia, tentou chamar minha atenção mais uma vez - Filho!

Agora eu finalmente tinha escutando o que ela estava dizendo. O quarto agora estava limpo, nenhum sinal de sangue ou tripas, apenas os pequenos fragmentos de porcelana espalhados pelo chão.

- Vamos! Conte pra mamãe!

- O-o palhaço... Tentou me atacar.

- Quê? Filho... Isso é coisa da sua imaginação, ele era apenas um boneco, como ia poder se mover?

- Não! Não é! E- ele se moveu sim! Eu vi! Ten- tentou agarrar minhas pernas!

- Calma amorzinho, dá um abraço aqui na mamãe.

Com isso pude me acalmar, nada como um abraço materno, nos sentimos seguro com todo aquele calor agradável.

- Mamãe, eu juro que é verdade, ele se moveu.

- Tudo bem filho, tudo bem. Agora vamos lá embaixo ajudar a mamãe a limpar o quartinho da escada - com isso desvencilhou-se do meu abraço e me levantou pelas mãos.

Limpar aquele pequeno cômodo seria uma tarefa difícil, uma camada grossa de poeira cobria todos os objetos ali presentes como se fosse um enorme lençol. Passado pouco tempo eu já estava começando a espirrar, e minha mãe havia pedido para eu sair dali. Durante o resto da tarde brinquei com meu irmão no jardim.

Já começava a escurecer, a lua cheia já estava no céu, pedindo ao sol para ir embora de vez. Mamãe agora me chamava para jantar, estava bem cedo, seis horas da noite, mas na companhia do tio Les, que cobrava a janta mesmo depois de ter acabado de comer o almoço, ela não aguentaria ouvir ele pedindo a janta por muito tempo.

- Hmm! Delícia! Posso sentir o cheiro do molho da macarronada! - Tio Les comia com o nariz também, como um aperitivo para o que viria goela abaixo depois.

Com todos sentados em suas devidas cadeiras, mamãe servia a macarronada e a salada na mesa de jantar, tio Paul avançava na macarronada como um gavião em pleno mergulho para agarrar sua presa.

Fiquei até com medo de estender o talher para pegar minha parte, o olhar insaciável do meu tio demonstrava que ele poderia enfiar o garfo na mão de quem tentasse. Então todos esperaram até que ele fizesse a típica montanha em seu prato.

- E então Paul, como andam os negócios da família? - perguntava meu pai, enquanto tentava fisgar uma pequena almôndega.

- Ah, aquela joça? Está indo de mal a pior se quer saber! Hoje em dia ninguém está mais querendo saber de produtos naturais!

- Uma pena... - disse mamãe, concentrada em pegar uma grande folha de alface.

- Uma pena é? Pena quem tem é pássaro! Vamos ter que vender outras coisas se quisermos nos manter.


Para variar outra fala idiota do titio, acho que o cerébro dele havia descido para o traseiro. Aquela conversa sobre negócios não me animava nem um pouco, torci para que aquele jantar em família acabasse logo, para que eu pudesse ir dormir.

O que eu mais desejava no momento era estar de volta às aulas, para passar o máximo de tempo possível longe daquela casa. A primeira noite tinha sido uma tortura, em plena luz do dia, embora meu quarto estivesse sempre escuro, brinquedos me atacavam. O que eu podia esperar de mais uma noite? Uma criança normal estaria traumatizada, mas felizmente, eu não era uma criança normal.

Tio Les já estava percebendo que se comesse um pouco mais iria explodir, então decidiu parar. Minha mãe agora levava os pratos à pia, sorte dela que o titio só usara um prato em todas as suas repetições. Agora ele levantava, com a dificuldade de sempre e claro, fazendo a cadeira ranger.

- Jantares sempre me deixam sonolento! Vou para meu quarto - avisou Les.

Uma súbita vontade de fazer o número dois me abatia naquele momento, corri para o banheiro do andar de baixo. Enquanto estive ali, sob o silêncio, pude ouvir ao longe as conversas que vinham da cozinha atravessando as paredes. Papai e mamãe comentavam a meu respeito, "Você não acha que tem algo de errado com essa casa?" opinou meu pai. Certamente tinha e no momento só eu sabia, por enquanto.

Não sei exatamente quanto tempo passei ali, mas certamente foi muito. Voltei a cozinha para dar boa noite à mamãe, que agora estava cortando carne na tábua de madeira, estranhei, por que estava fazendo aquilo? Ela sempre ia para o quarto dormir, logo após a janta.

- Mamãe? Está cortando carne?

Ela não respondeu.

- Mamãe, a senhora está bem? - Me aproximei dela pela lateral.

Realmente ela estava cortando carne, mas não era para preparar uma refeição. Ela batia com força a faca em cada dedo, duas vezes, para quebrar o osso, primeiro vinha um som abafado, depois um baque, quando a faca atingia a tábua, ia arrancando-os um a um. Jogou os cinco dedos dentro de uma tigela e virou-se para mim rapidamente, estendendo-a , agora preenchida com um cereal de dedos, leite, sangue, dedão, anular, mindinho...

- Aceita um cereal?

Agora via aquele rosto que reconhecia tão bem, a maquiagem escura ao redor dos olhos, o batom forte, a pele pálida, era a bailarina que outrora estava em um corpo de aranha. Eu tinha caído no chão com o susto, não conseguia gritar, havia perdido a voz, entrei em pânico, não conseguia raciocinar direito.

Estalos podiam ser ouvidos da garganta da mulher, a cabeça maquiada agora parecia estar fora do lugar, se entortava de uma maneira estranha. O corpo aracnídeo da bailarina havia saído pela garganta de seu fantoche humanóide, que caía no chão,com um som de carne após levar uma martelada. A nojenta bailarina aranha agora andava sem rumo pela cozinha, comendo os dedos que encontrava no caminho.

Finalmente consegui me levantar e fui embora correndo o mais rápido que pude.

Chegando em meu quarto, tranquei a porta e me joguei na cama, pegando o lençol para me cobrir o mais rápido possível. Dei uma rápida olhada para a janela, e ela já estava lá, a aranha, parada e inexpressível, a observar o quarto. Como eu gostaria de estar no lugar do meu irmão agora, que dormia tranquilamente sem nenhuma assombração para pertubá-lo.

Fechei os olhos com força, me esforçando para não abrí-los em momento algum. Agora a aranha passeava sobre as bordas da minha cama, fixando aquele olhar mórbido em mim, pulou em meu rosto.

- AAAAAAHHH!

Acordei daquele pesadelo com um grito que se prolongava além dos sonhos, alguém estava gritando pelo corredor em pleno início da manhã, reconheci os berros, era o tio Les. A gritaria agora estava na sala, pelo visto ele não teve uma boa noite de sono, como eu suspeitava.

Mamãe, papai, eu e meu irmão, fomos ao hall de entrada para ver o que aconteceu. Tio Paul berrava, enquanto corria sem rumo pela sala.

- Belo casarão esse que vocês arranjaram hein! Que diabos! Que diabos! Eu vou embora daqui agora!

- Calma Paul! O que aconteceu!? - Perguntou mamãe.

- Ora o que aconteceu! Primeiro uma menina de vestido branco sai de dentro do guarda roupa no meio da madrugada! Depois acordo embaixo da cama! Pra mim já chega!

Sem dizer mais nada, meu tio foi ao quarto em que dormira e depois voltou com as malas prontas. Quase caiu da escada ao descer, eu nunca tinha visto o rosto dele tão pálido.

- Passar bem Laura.

Agora ele já estava lá fora ligando o carro e fazendo o que eu também gostaria de ter feito, ir embora daquela casa.

Mamãe e papai agora olhavam para mim com outro olhar, parece que finalmente entenderam que eu estava dizendo a verdade todo aquele tempo.

- Filhinho, desculpe não ter acreditado em você - adiantou-se mamãe.

- Laura, acho melhor irmos embora daqui amanhã, estou começando a achar que as coisas aqui não estão nada bem - concluiu papai.

Finalmente uma idéia sensata de ambos, em pouco tempo eu estaria fora daquela maldita casa.



Continua...