"Viaje além de sua imaginação"

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Cão e a Cruz

Dona Chica teve sete filhos, o sétimo havia sido com um padre de uma pequena cidade no norte do Pará, onde atualmente residia, deitada em seu caixão, na sua simples cova. A cruz de madeira com seu nome, fincada sobre o túmulo, balançava quando o vento forte batia, mas nunca caía, assim como a velha fora em vida.

O pai da sétima criança fugiu para outro estado quando o menino mais velho atingiu a maioridade. No dia em que foi embora, o homem parecia assustado, não tinha se despedido do filho, o sétimo de Dona Chica, nem dos outros que ela tivera com os outros homens de sua vida. O padre deixou sua igreja, a pequena e simples capela branca, para os meninos da família, um deles havia assumido o sacerdócio

Sem ter mais pai algum, a mãe, Francisca, teria de cuidar das sete crianças sozinha, eram sete meninos. Quando Ronaldo, filho de Francisca, virou o padre da igreja do vilarejo, ele passou a morar na capela, junto com seu irmão José, que precisava de bastantes cuidados, pois tinha a saúde frágil, era pálido e magricela.

Em uma noite de sexta-feira, enquanto fazia o prato que seus filhos mais gostavam, o Tacacá, uma sopa amarelada com goma e camarão, Dona Chica foi abatida por um mal estar repentino e em seguida atacada por alguma coisa que lembrava um cão, não teve tempo de reconhecer, quando menos percebeu, já tinha passado desta pra melhor. A partir desse dia, surgiram rumores de que uma fera sempre era avistada correndo durante as madrugadas de sexta-feira, atacando os desprevenidos. Muitos diziam que um lobisomem tinha chegado à cidade e se instalado por lá. Todas as sextas, alguns caçadores saíam à procura da besta para matá-la.

Após a longa missa da tarde de Domingo, Ronaldo estava com uma vontade imensa de comer carne, de preferência mal passada, sua preferida; foi até a cozinha para prepará-la, para ele e para seu irmão José. O calor estava insuportável, nas ruas a areia alaranjada era levada pelo vento, formando verdadeiras nuvens arenosas, que invadiam as casas alheias, o que incluía a capela também. Ronaldo sabia que após o almoço teria de cumprir sua rotina limpando a entrada da igreja, pondo a areia para fora.

Bem alimentado, tratou de conversar com seu irmão, que passava o dia de cama, José adorava ouvir as histórias de Ronaldo e também a palavra do Senhor, se sentia a pessoa mais feliz do mundo quando o irmão o vinha visitar no quartinho atrás da capela, onde os dois dormiam. Após conversar com José, o padre ia para o velho e pequeno confessionário de madeira, atender os fiéis. Todos os dias Ronaldo ouvia confissões absurdas, imaginando se realmente servia de alguma coisa para estes cidadãos ouvir a palavra de Deus, mas ele sabia que não devia questionar os poderes da fé e assim seguia com seu trabalho sempre bem executado: “reze dez ave marias e quinze pai nossos”.

Saindo do confessionário, o suor escorrendo por seu rosto, Ronaldo escuta alguém o chamando, ao se virar vê que era uma das fiéis mais fervorosas da igreja, uma colega querida dele.

- Dona Joana! O que fazes aqui? Ainda falta muito para a missa das seis.

- Ah, nada padre, só vim conversar com o senhor.

- O que me contas?

- O senhor sabe que nos últimos tempos a fera tem atacado com mais frequência? Estou com medo Ronaldo.

- Não há o que temer minha amiga, o poder do senhor protege quem segue a palavra. Sente-se vou trazer um copo d’água para a senhora, deve estar seca de tanta sede.

Enquanto tirava a garrafa da geladeira e apanhava o copo, Ronaldo refletia sobre o que Joana havia dito, “a fera tem atacado com mais frequência”, na verdade ele tinha muito medo da besta, mais do que qualquer um daquela cidade, tinha certeza, tremia quando lhe falavam da criatura, mas tentava sempre demonstrar firmeza e coragem e até agora tinha conseguido, todos ficavam contentes em estar perto dele, se sentiam seguros. A água agora transbordava do copo de vidro, Ronaldo resmungava.

Levando a água para a mulher, ele foi surpreendido por uma pergunta.

- Padre, não pude deixar de notar esses rasgos em sua roupa, o que foi isso?

A mão de Ronaldo fraquejou e agora o copo havia se transformado em estilhaços quando caiu no chão.

- Oh meu deus! - Exclamou a mulher.

- Não se preocupe Dona Joana! Não se preocupe! - Falava Ronaldo rapidamente, enquanto já catava os restos do copo - Eu só estava desatento, não use o nome do Senhor em vão.

- Desculpe padre, força do hábito.

- Sim, a pergunta que fez pra mim. Foi apenas um acidente de ontem, eu estava passando pela porta quando minha blusa ficou presa em um pedaço de madeira solta e acabou rasgando.

- Ah, acontece né?

- Vou na cozinha pegar a água da senhora - avisou, com os cacos de vidro agora em sua mão.

- Não senhor, não precisa, já estou indo, não se incomode. Vou para casa agora, tenho que preparar o café e depois me arrumar para a missa.

- Certo senhorita, te vejo mais tarde.

- Até.

Assim Dona Joana saía da capela, questionando acerca do comportamento estranho de Ronaldo, que não só tinha derrubado o copo como havia ficado da cor das paredes da igreja.

O padre agora respirava aliviado depois de a mulher ter ido embora, por pouco havia se safado de contar o verdadeiro motivo daquele rasgo, teve sorte por não estar com suas outras camisas que estavam em pior estado. A noite estava chegando, e com ela o compromisso inadiável de Ronaldo, foi ao seu quarto trocar de roupa, aproveitando para conversar novamente com o irmão.

Os outros irmãos de Ronaldo haviam crescido com os cuidados dos vizinhos, após a morte da mãe. Eles vinham sempre frequentar as missas do querido irmão ou então tomar um café com ele e José no fim da tarde. Apesar das dificuldades que passaram, todos eles eram muito unidos e dotados de uma personalidade bondosa.

Ronaldo tinha celebrado a missa com excelência, sua satisfação em ajudar as pessoas o fazia uma pessoa realizada, mesmo com suas preocupações, fardo que acompanha os seres mortais. Agora ele cumprimentava os fiéis e os irmãos, José também assistia as missas quando podia.

- Ronaldo meu amigo! Como está a vida? - Perguntava o prefeito da cidade.

- Está ótima Carlos, obrigado - respondeu Ronaldo, o prefeito agora dava tapinhas no ombro do padre enquanto ia cumprimentar os outros.

- Meu grande irmão! - Cumprimentou um dos membros da família.

- Rafael! - O padre abraçava o irmão.

- Quando vai voltar a fazer missas nas sextas hein? - Perguntava Rafael.

- Tu sabes que é um dia perigoso não é? As pessoas não estão mais saindo de casa com medo da besta e eu não gostaria de imaginar aquela fera entrando na igreja em plena missa. Estou me protegendo como posso, a mim e a todos.

- Espero que peguem logo esse lobisomem, ele matou nossa mãe, é o que mais desejo, a morte do bicho, estou tentando ajudar os caçadores a pegá-lo nas noites de sexta.

Ronaldo suava frio após ter escutado o irmão dizendo “é o que mais desejo, a morte do bicho”, pegou um lenço e rapidamente limpou a face.

- Irmão, tu não deves desejar a morte dos outros, nas sextas ele pode ser um bicho, mas nos outros dias é humano, como todos nós - advertiu o padre.

- Desculpe irmão, sou apenas um simples pecador.

- É uma pessoa de ótimo coração também, pecadores todos nós somos.

Às oito da noite todos saíam da igreja e o padre arrumava o altar, retirando o que devia ser limpo e varrendo-a. Antes de dormir, pedia ao pai que zelasse pela saúde de José e pela segurança de todos da pequena cidade, que os livrasse da besta.

Todas as noites de sexta-feira, Ronaldo sumia, ninguém da cidade sabia onde ele estava, aqueles que tinham coragem de sair naquele momento, geralmente mendigos ou pessoas sem teto que vagavam sem rumo pela cidade, podiam ouvir choros vindo da casinha atrás da capela, provavelmente era o irmão do padre, que se sentia solitário ali sozinho na noite obscura.

Após notarem que Ronaldo não estava na cidade nas sextas, o povo passou a desconfiar dele, “quem diria, o padre, justamente o padre da nossa cidade suspeito de ser a besta” comentavam os habitantes indignados. Os caçadores vasculhavam o matagal que cercava a cidade na noite escura em busca de pistas ou da própria fera, todos eles armados até os dentes.

De três em três domingos, eles pediam a Ronaldo que lhes deixassem pegar a cera das velas que foram utilizadas somente nas missas de domingo, segundo a lenda, o lobisomem só poderia ser morto com bala untada com cera que queimou em três missas de domingo ou em Missa-do-Galo. Agora, suspeitando que Ronaldo era a fera, os caçadores olhavam de um jeito estranho para ele e o padre sentia isso, havia medo e receio nos olhos deles.


Continua...

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