"Viaje além de sua imaginação"

quinta-feira, 18 de março de 2010

Além do Sepulcro



Quantos dias e quantas noites haviam se passado? Eu realmente não sabia. Um sentimento desconhecido por mim brotava agora nas entranhas de meu coração, seus batimentos aos poucos aceleravam, mesmo com todo aquele peso sobre ele. O sangue que outrora circulava lentamente, agora começava a ferver, estava esquentando no ritmo de meu corpo frio. Os ossos rígidos e doloridos, "Aaah, como me fez mal todo aquele frio que senti". Eu estou confortavelmente confuso, delirando com meus próprios pensamentos, viajando em meu subconsciente.

Progressivamente a pesada realidade vinha caindo sobre minha pobre alma recém-despertada, meu corpo chumbado aos poucos estava absorvendo a líquida essência extraterrena. O preenchimento da carne humana, pela primeira vez na vida estava sentindo aquilo na pele, "Estava eu reencarnando? Finalmente voltando à prazerosa vida?".

"Será que há séculos eu tinha despertado? Que lugar era aquele? Que lugar é este, tomado pela escuridão eterna?". Me senti um ser vivo novamente, o sangue circulava, quente como o fogo; eu podia sentir meus pulmões inchando novamente, realizando seus movimentos involuntários, "Ah, o ar terreno!". Demorei um pouco para perceber que não havia muito o que inspirar ali, não sei se foram segundos, minutos, horas, dias ou anos. Fui tomado por uma sensação de pânico quando passei os dedos pela superfície lisa acima de mim, eu estava vivo, porém preso, cercado pela escuridão claustrofóbica, não havia espaço algum para movimentar-me. "Que diabos de lugar é este!". Acima de mim, ouvi uns sons distantes, abafados.

- Não! Meu pobre Paul! Por quê!? Por quê!?

"Paul? Eu sou o Paul!". Me debati como um louco dentro daquele compartimento limitado, gritei o mais alto que pude, implorando por ajuda; esforço inútil. Não pude mais ouvir os prantos do povo lá de cima, tinham ido embora.

Minha alma voltara em hora errada. Em um tempo indefinido, apodreci ali, a 7 palmos abaixo da grama verde e vívida que pairava lá no mundo de cima.

"Hora de voltar de onde vim"

terça-feira, 16 de março de 2010

A Breve História de Keith Gallagan


Eu andava olhando para o chão sujo das ruas de Nova York, reparando em cada embalagem de bombom, em cada cesta de lixo, em cada saco plástico. Naquele dia eu estava decidido em fazer o que tanto queria, carregava comigo o instrumento de trabalho, escondido no casaco. O beco escuro, agora na minha frente, simbolizava o local certo, era a entrada dos fundos de um dos clubes noturnos famosos do bairro. Tentei abrir a porta de ferro, mas estava trancada, como suspeitei. Tirei a enorme arma que eu carregava de dentro do casaco e atirei na fechadura, chutei a porta para arrombá-la.


Entrando no local, era possível ouvir o som abafado da música eletrônica que tocava no palco distante, a fumaça do gelo seco que preenchia os fundos do clube embaçava minha visão e tornava difícil a respiração. Dois seguranças se aproximavam de mim, os vultos largos e altos.

- Ei! O que pensa que está...

Ele foi silenciado com um tiro de minha escopeta, agora voava para longe. O outro agarrou a arma com as mãos, acabou perdendo-as após um disparo, enquanto gritava de dor, me aproximei e lhe dei um chute na face.

Segui até a cortina, que levava ao palco onde a dançarina realizava sua Pole Dance.
Peguei o molotov que havia preparado em casa e joguei na platéia, todos corriam assustados, alguns rolavam no chão em chamas. Em seguida atirei para todos os lados, até gastar todas as balas que comprei, o sangue pintava as paredes de vermelho, a dançarina agora estava olhando fixo para baixo, no chão, nunca mais iria voltar a dançar. “Todos aqueles porcos mereciam aquilo, a morte era pouco para eles”.

Saí do local, novamente pela porta dos fundos, corri em direção à rua cinzenta e voltei para casa, andando pelos becos escuros para que a polícia não me encontrasse. Chegando a meu quarto, me joguei na cama e desmaiei devido ao cansaço.


Acordei olhando para o despertador, que agora fazia um barulho estridente, o derrubei no chão para calá-lo. Ao me levantar, tirei o casaco e fui ao banheiro, não podia me atrasar para o trabalho, aquele banho era um dos poucos momentos relaxantes que eu tinha, naquele dia parecia ainda mais prazeroso.

Eu trabalho em uma das maiores empresas de Nova York, para mim dinheiro nunca foi problema, tinha uma coleção de carros em minha mansão. Na garagem escolhi o carro que mais se adaptava ao meu humor naquele dia, uma Ferrari preta. Na rua todos olhavam para meu veículo, pessoas boquiabertas com os olhos arregalados, isso me enchia de satisfação.

Na empresa todos me cumprimentavam, as mulheres me mostravam um sorriso sedutor, sempre tive uma tara por uma delas, a única que não me dava atenção, porém naquele dia maravilhoso tudo parecia diferente, as coisas mudaram para melhor. Ellen, a tão cobiçada mulher agora vinha em minha direção com seu olhar sexy, o sorriso perfeito no rosto.

- E então garotão, está livre hoje à noite? - Disse ela.

- O quê? O que te levou a mudar de atitude assim tão de repente hein senhorita?

- Ligue para mim quando sair do trabalho, estarei no restaurante Sacré Coeur.
Satisfeita em ter me deixado abobalhado, ela foi embora para seu escritório, o lindo e longo cabelo negro e brilhante balançando suavemente, deixando seu perfume no ar, eu fitava o seu belo traseiro. “Hoje eu acordei com o pé direito” pensei.

- Ei Keith! Hoje à noite vamos ao clube não é? - Perguntou um de meus colegas de trabalho, me despertando dos devaneios.

- Ah cara, desculpa, mas não vou poder ir, sabe como é, agenda lotada, obrigado pelo convite - sorri.

A tão esperada noite havia chegado, meu coração batia cada vez mais forte, minhas mãos tremiam de hesitação, foi difícil abrir a porta do carro, nunca pensei que um dia seria trabalhoso colocar uma chave em sua devida fechadura.

Fui até a linda rua iluminada pelas luzes coloridas dos restaurantes, era um verdadeiro pólo gastronômico aquele lugar, os estacionamentos estavam todos lotados, tive que estacionar umas duas ruas depois, em um estacionamento privado. Estava com pena de sujar os meus sapatos novos, andei olhando para o chão, passando longe de qualquer poça de água.

Uma rua antes do restaurante, a polícia abordava um homem, com as armas apontadas para ele, o criminoso carregava uma escopeta, nunca imaginei que aquele bairro nobre e movimentado fosse tão perigoso.

O letreiro luminoso esverdeado do Sacré Coeur brilhava incessantemente sobre minha cabeça, era um lugar realmente lindo, combinava perfeitamente com Ellen e com todas as mulheres lindas que estavam ali. A avistei sentada numa mesa perto de uma pintura famosa, caminhei até lá.

- Olá, desculpe se atrasei alguns minutos.

- Tudo bem Keith, eu acabei de chegar também - disse ela, sorrindo para mim. Como era reconfortante aquele sorriso.

- Sabe você me parece menos bruto fora da empresa.

Aquela frase me deixou completamente sem jeito.

- Ah, e- eu tenho que adotar o jeito de ser de um bom chefe... Não posso pegar leve com os funcionários. Parece meio chato, mas é assim que tem que ser.

- Admiro isso em você.

- Escuta, sem querer ser chato, mas você nunca me deu atenção e agora se mostra uma admiradora minha, estou estranhando isso.

Antes que ela falasse algo, fomos interrompidos pelo garçom que perguntava o que iríamos querer como prato de entrada.

- A salada da casa, por favor - pedi.

- O mesmo para mim - disse Ellen.

A noite se seguiu à base de muito vinho e comida, acho que eu já tinha bebido bastante, estava começando a ficar tonto, as palavras de Ellen demoravam alguns segundos a mais para entrar em meus ouvidos. Comecei a soltar uma série de elogios a ela, inclusive disse que ela tinha uma bunda perfeita, Ellen não se chateou, pareceu ter gostado, apenas sorria, me deixava falando feito um idiota.

Quando ela me ajudou a pagar a conta no fim da noite, caminhamos até a entrada brilhante e florida do restaurante. Ela estava deslumbrante com aquele vestido vermelho, combinado com o batom em seus lábios, aquela boca sexy e irresistível.

Encaramos-nos por um bom tempo, sem dizer nada um para o outro. Nossos corpos se aproximaram lentamente, aqueles lábios agora seriam meus, iria sentir o sabor da mulher que desejei ter há tanto tempo, nossos rostos estavam a uns poucos centímetros um do outro, meus lábios en...

Acordei apavorado, uma explosão parecia ter acontecido na sala, pude ouvir vários passos lá, pessoas resmungando coisas, será que estavam tentando me roubar?

Olhei para mim mesmo no espelho que ficava de frente à cama, estava com aquele casaco velho, minha cara estava horrível, “Meu Deus” falei para mim. Um grupo de policiais uniformizados agora brandia suas armas em minha direção.

- Senhor Keith Gallagan, o senhor está preso acusado de assassinato em massa!

O perfume de Ellen, o dia e a noite perfeita, apenas devaneios de um assassino. Keith Gallagan, o caixa de supermercado que vivia sozinho em uma pequena casa, havia gastado todo o dinheiro que possuía com armas e munições, para se vingar daqueles que o humilharam.


“Ah, a velha e chata realidade...”

Tique Taque

A jovem moça dormia agoniada com o chato ruído do relógio da cozinha, o tique taque de todo santo dia. Rolava para a direita, em seguida para a esquerda, à procura de uma boa posição, mas nenhuma parecia boa o bastante. Suava, o ventilador não estava ventilando o suficiente para livrá-la do calor infernal de seu quarto. Ela cravava as unhas com força no colchão na esperança de que aquilo a livrasse daquele turbilhão de sensações ruins. O relógio de parede sempre no seu tique taque rítmico. A moça queria ir até lá e quebrar o objeto, mas ela sabia que aquilo apenas iria prejudicá-la.

Já estava exausta, a moça teve seu momento de paz, seus pensamentos se esvaíam aos poucos, o tique taque do relógio agora ficava cada vez mais distante. A jovem adormeceu.

Na manhã do dia seguinte, ao acordar, a mulher foi até a cozinha ter sua vingança, iria quebrar aquele troço, fazê-lo em pedaços, mas ao encarar seu inimigo ela percebeu que havia algo de errado, ele estava parado, na hora doze. Notou que estava se sentindo um pouco estranha, parecia mais leve do que já era. Virou-se para trás e viu algo que a deixou preocupada, seu remédio para o coração estava ali em cima do balcão, ela tinha esquecido de tomar no dia anterior.

Recordou que tinha chegado em casa cansada e se jogado na cama de seu quarto, havia cochilado e acordado no meio da noite, agoniada, desesperada e se rebatendo na cama.

Achou estranho que agora estivesse bem, sem nenhuma seqüela da crise do dia anterior. Voltou para o quarto, deitar na cama ajudaria ela a pensar melhor.

A jovem moça agora via a si mesma deitada na cama, pálida como seu lençol branco, a boca aberta e os olhos revirados. O relógio não mais tique taqueava.



quarta-feira, 10 de março de 2010

O Cão e a Cruz (Parte Final)

A cada semana a besta fazia novas vítimas e a população estava cada vez mais furiosa. Dona Joana já havia sido levada, em uma das noites, somente partes de seu corpo foram encontradas jogadas pela cidade, grande parte da rua das Alamedas foi tingida de vermelho. Ciro, irmão de Ronaldo, disse ter visto uma silhueta canina próxima à capela, ao ter olhado pelas frestas da janela, em uma noite de sexta-feira.

Em uma tarde de segunda, Ronaldo tinha resolvido procurar César, um grande conhecedor das lendas locais, também um contador de histórias, parece que sabia de muitas coisas a cerca dos lobos humanóides. O padre estava de frente à uma casa amarela, com os olhos semi cerrados devido ao calor, na frente do casebre, um senhor balançava-se para frente e para trás em sua cadeira de balanço, fumando cachimbo.

- Com licença, é aqui que mora o César? - Perguntou Ronaldo.

- O César? Sou eu - disse o velhote, tossindo. Ele tinha uma cara murcha e larga, o narigão enrugado se destacava em sua face de pele escura.

- Boa tarde senhor, eu sou Ronaldo, o padre da capela de São Miguel - disse estendendo a mão para que o velho a apertasse. Após o aperto de mão, César olhou atentamente nos olhos do padre.

- Eu conheço você, já assisti a uma missa sua, prega bem a palavra do Senhor.

- Obrigado.

- A cidade pensa que tu és a besta, está sabendo não é? Olham feio pra ti.

- Claro, mas o Senhor me protege de todos os males. Foi justamente por isso que vim te procurar, para saber mais sobre a besta.

- Ah, meu caro, posso lhe dizer bastante coisa, meu pai já encontrou um lobisomem quando era jovem, teve sorte de escapar com vida, ele passou a vida pesquisando sobre esta maldição, me passou tudo o que podia.

- Conte-me.

- Sente aí nesta cadeira - o velho aguardou um momento, esperando o padre se acomodar na outra cadeira de balanço. - Bem, vamos começar sobre como se deve deter a besta, uma das maneiras é colocando cera de vela usada em três missas de domingo, essa você já deve saber.

- Sei sim. Na verdade eu não quero matar a besta sabe, apenas quero me proteger.

- Entendo, realmente não cairia bem para um padre matar alguém. A maldição do Kumacanga ou lobisomem, faz com que a pessoa sinta um grande desejo de comer carne, comida salgada e traz uma sede incontrolável, a criatura precisa se alimentar de sangue para viver, se encarrega de obtê-lo quando está transformado. Diz a lenda que quando uma mulher tem sete filhos homens, o sétimo será um lobisomem, ou então quando a mulher se amanceba com um padre. A maldição se desenvolve quando a criança completa treze anos de idade.

Ele apenas havia confirmado o que já sabia, “treze anos de idade”, era horrível saber daquilo, sentia o olhar canino quando fechava os olhos, era aterrorizante, aquilo o atormentava há alguns anos. Sete filhos, a carne, o sangue, o padre, tudo agora estava confirmado, a lenda não era apenas uma lenda, de fato existia e estava mais perto de Ronaldo do que qualquer um poderia imaginar.

- Já ouvi o suficiente, vou embora, muito obrigado César - disse Ronaldo levantando-se.

O velho não disse nada, apenas ficou olhando para o padre fixamente, franzindo seu cenho, a fumaça do cachimbo cobrindo-lhe a face.

A sexta-feira havia chegado novamente, a maldita sexta. O povo da cidade estava decidido dessa vez, em invadir a igreja, para pegar Ronaldo no flagra, para acharem a besta. Perto do anoitecer, os cidadãos brandiam suas tochas, pás e enxadas rumo à capela, gritavam indignados, “Isto vai ter um fim esta noite!”,” A besta não irá mais nos perturbar!”,”Não haverá vítimas em nossa cidade esta noite!”. Chegando na porta da capela, o mutirão arrombou o portão e adentrou no local, o altar alaranjado pela luz das tochas, o silêncio reinava ali, mesmo com o grito de todas aquelas pessoas, era um cenário sombrio, todos haviam se calado, agora vasculhavam o lugar em busca de Ronaldo.

Ao chegarem no quartinho em que dormiam os irmãos, encontraram apenas José, pálido e ofegando em sua cama, estava muito assustado com a invasão repentina daquelas pessoas na casa do Senhor.

- José! Por Deus, onde está o seu irmão?

- Eu não sei.

- Ora, não precisa mentir, estamos aqui para o seu bem, para te salvar das garras da besta, diga para nós.

- Estou falando a verdade! Não sei!

Todos os que estavam no quarto olhavam um para o outro, incrédulos, iluminados somente por suas tochas. Na visão de José os rostos de todos demonstravam que estavam sedentos por sangue, o ódio pela besta havia contaminado todas aquelas pessoas com um instinto assassino.

- Vamos embora, ele não está aqui, pobrezinho do irmão dele, abandonado neste quartinho escuro... Venha conosco garoto.

- Não, eu não quero. Aqui estou mais seguro, na casa do Senhor.

- Que seja. Hoje iremos achar a fera, custe o que custar - as pessoas agora evacuavam a igreja.

Nas ruas desertas da cidade, podia-se ouvir apenas o vento e os passos das pessoas revoltadas que vagavam pela cidade em busca do lobisomem. Durante a caminhada, um dos homens disse ter visto uma silhueta correndo para o matagal, logo os caçadores adiantaram-se, aquela era a chance de ouro. Eles se separaram prontos para armar uma armadilha para a besta, cercariam o bicho em um círculo, o deixaria sem saída.

Não tardou para que encontrassem o homem lobo, agora a criatura rosnava para os homens armados que o flanqueava, sentia-se ameaçado, de fato estava muito encrencado. A saliva deslizava por sua enorme boca canina, repleta de dentes afiados; os pêlos escuros eram escassos em algumas regiões do corpo e também era mal distribuído; as orelhas pontudas lembravam chifres e os olhos amarelados eram intimidadores. O monstro estava sedento por sangue e carne humana, seus instintos o dominaram, o cão agora pulava em cima de um dos caçadores com extrema rapidez, o homem nada pôde fazer, estava sendo devorado, o sangue jorrava por todos os lados, tornando as plantas antes azuladas com a luz do luar, vermelhas, um vermelho escuro e denso; logo os gritos do homem cessaram, quando a besta o mordeu na jugular. Os outros que observavam a cena chocados, agora não viam outra solução senão atirar no bicho e assim fizeram. O lobisomem fora fuzilado, perfurado pelas balas sagradas, untadas com as velas da Igreja de São Miguel, em pouco tempo caiu duro na grama, os olhos perdendo a cor amarelada, a língua pendendo para fora da boca, a besta foi abatida.

Ronaldo notando a confusão que vinha lá de cima, saiu de seu esconderijo, que ficava próximo à sua cama, um pequeno porão que havia feito para se proteger da besta na noite. Reunindo toda a sua coragem, levantou o alçapão lentamente, olhando para todo o ambiente, seu irmão havia sumido. Foi andando até a cozinha, do lado de fora era possível ouvir gritos, mas não eram gritos de horror e sim de comemoração. Chegando na praça da cidade, encontrou os cidadãos reunidos ao redor de um poste, em que no alto uma criatura lupina pendia, balançando de um lado para o outro, presa com uma corda grossa no pescoço, o sangue da besta ainda escorria por seu corpo, pingando e criando uma poça de sangue abaixo dela.

O padre foi tomado por uma sensação horrível, caiu de joelhos e começou a chorar, isto fez com que todos se calassem e olhassem para trás. Ao verem Ronaldo ficaram perplexos, pensavam que ele era a fera, mas se ele estava ali ajoelhado, quem era a maldita criatura? Só o amanhecer os daria a resposta.

Todos foram para suas casas, alguns tentavam consolar Ronaldo, mesmo não sabendo o motivo porque tanto chorava, devia estar feliz pelo fim da besta. O padre ficou ali, olhando para a pobre figura do monstro, pendendo tristemente no poste, durante toda a madrugada.

Quando os raios de sol começavam a surgir no horizonte, a figura de José, o sétimo filho de Dona Chica, filho do antigo padre da cidade, aparecia onde outrora estava a besta. O querido e frágil irmão de Ronaldo havia completado treze anos naquele dia.



FIM.

O Cão e a Cruz

Dona Chica teve sete filhos, o sétimo havia sido com um padre de uma pequena cidade no norte do Pará, onde atualmente residia, deitada em seu caixão, na sua simples cova. A cruz de madeira com seu nome, fincada sobre o túmulo, balançava quando o vento forte batia, mas nunca caía, assim como a velha fora em vida.

O pai da sétima criança fugiu para outro estado quando o menino mais velho atingiu a maioridade. No dia em que foi embora, o homem parecia assustado, não tinha se despedido do filho, o sétimo de Dona Chica, nem dos outros que ela tivera com os outros homens de sua vida. O padre deixou sua igreja, a pequena e simples capela branca, para os meninos da família, um deles havia assumido o sacerdócio

Sem ter mais pai algum, a mãe, Francisca, teria de cuidar das sete crianças sozinha, eram sete meninos. Quando Ronaldo, filho de Francisca, virou o padre da igreja do vilarejo, ele passou a morar na capela, junto com seu irmão José, que precisava de bastantes cuidados, pois tinha a saúde frágil, era pálido e magricela.

Em uma noite de sexta-feira, enquanto fazia o prato que seus filhos mais gostavam, o Tacacá, uma sopa amarelada com goma e camarão, Dona Chica foi abatida por um mal estar repentino e em seguida atacada por alguma coisa que lembrava um cão, não teve tempo de reconhecer, quando menos percebeu, já tinha passado desta pra melhor. A partir desse dia, surgiram rumores de que uma fera sempre era avistada correndo durante as madrugadas de sexta-feira, atacando os desprevenidos. Muitos diziam que um lobisomem tinha chegado à cidade e se instalado por lá. Todas as sextas, alguns caçadores saíam à procura da besta para matá-la.

Após a longa missa da tarde de Domingo, Ronaldo estava com uma vontade imensa de comer carne, de preferência mal passada, sua preferida; foi até a cozinha para prepará-la, para ele e para seu irmão José. O calor estava insuportável, nas ruas a areia alaranjada era levada pelo vento, formando verdadeiras nuvens arenosas, que invadiam as casas alheias, o que incluía a capela também. Ronaldo sabia que após o almoço teria de cumprir sua rotina limpando a entrada da igreja, pondo a areia para fora.

Bem alimentado, tratou de conversar com seu irmão, que passava o dia de cama, José adorava ouvir as histórias de Ronaldo e também a palavra do Senhor, se sentia a pessoa mais feliz do mundo quando o irmão o vinha visitar no quartinho atrás da capela, onde os dois dormiam. Após conversar com José, o padre ia para o velho e pequeno confessionário de madeira, atender os fiéis. Todos os dias Ronaldo ouvia confissões absurdas, imaginando se realmente servia de alguma coisa para estes cidadãos ouvir a palavra de Deus, mas ele sabia que não devia questionar os poderes da fé e assim seguia com seu trabalho sempre bem executado: “reze dez ave marias e quinze pai nossos”.

Saindo do confessionário, o suor escorrendo por seu rosto, Ronaldo escuta alguém o chamando, ao se virar vê que era uma das fiéis mais fervorosas da igreja, uma colega querida dele.

- Dona Joana! O que fazes aqui? Ainda falta muito para a missa das seis.

- Ah, nada padre, só vim conversar com o senhor.

- O que me contas?

- O senhor sabe que nos últimos tempos a fera tem atacado com mais frequência? Estou com medo Ronaldo.

- Não há o que temer minha amiga, o poder do senhor protege quem segue a palavra. Sente-se vou trazer um copo d’água para a senhora, deve estar seca de tanta sede.

Enquanto tirava a garrafa da geladeira e apanhava o copo, Ronaldo refletia sobre o que Joana havia dito, “a fera tem atacado com mais frequência”, na verdade ele tinha muito medo da besta, mais do que qualquer um daquela cidade, tinha certeza, tremia quando lhe falavam da criatura, mas tentava sempre demonstrar firmeza e coragem e até agora tinha conseguido, todos ficavam contentes em estar perto dele, se sentiam seguros. A água agora transbordava do copo de vidro, Ronaldo resmungava.

Levando a água para a mulher, ele foi surpreendido por uma pergunta.

- Padre, não pude deixar de notar esses rasgos em sua roupa, o que foi isso?

A mão de Ronaldo fraquejou e agora o copo havia se transformado em estilhaços quando caiu no chão.

- Oh meu deus! - Exclamou a mulher.

- Não se preocupe Dona Joana! Não se preocupe! - Falava Ronaldo rapidamente, enquanto já catava os restos do copo - Eu só estava desatento, não use o nome do Senhor em vão.

- Desculpe padre, força do hábito.

- Sim, a pergunta que fez pra mim. Foi apenas um acidente de ontem, eu estava passando pela porta quando minha blusa ficou presa em um pedaço de madeira solta e acabou rasgando.

- Ah, acontece né?

- Vou na cozinha pegar a água da senhora - avisou, com os cacos de vidro agora em sua mão.

- Não senhor, não precisa, já estou indo, não se incomode. Vou para casa agora, tenho que preparar o café e depois me arrumar para a missa.

- Certo senhorita, te vejo mais tarde.

- Até.

Assim Dona Joana saía da capela, questionando acerca do comportamento estranho de Ronaldo, que não só tinha derrubado o copo como havia ficado da cor das paredes da igreja.

O padre agora respirava aliviado depois de a mulher ter ido embora, por pouco havia se safado de contar o verdadeiro motivo daquele rasgo, teve sorte por não estar com suas outras camisas que estavam em pior estado. A noite estava chegando, e com ela o compromisso inadiável de Ronaldo, foi ao seu quarto trocar de roupa, aproveitando para conversar novamente com o irmão.

Os outros irmãos de Ronaldo haviam crescido com os cuidados dos vizinhos, após a morte da mãe. Eles vinham sempre frequentar as missas do querido irmão ou então tomar um café com ele e José no fim da tarde. Apesar das dificuldades que passaram, todos eles eram muito unidos e dotados de uma personalidade bondosa.

Ronaldo tinha celebrado a missa com excelência, sua satisfação em ajudar as pessoas o fazia uma pessoa realizada, mesmo com suas preocupações, fardo que acompanha os seres mortais. Agora ele cumprimentava os fiéis e os irmãos, José também assistia as missas quando podia.

- Ronaldo meu amigo! Como está a vida? - Perguntava o prefeito da cidade.

- Está ótima Carlos, obrigado - respondeu Ronaldo, o prefeito agora dava tapinhas no ombro do padre enquanto ia cumprimentar os outros.

- Meu grande irmão! - Cumprimentou um dos membros da família.

- Rafael! - O padre abraçava o irmão.

- Quando vai voltar a fazer missas nas sextas hein? - Perguntava Rafael.

- Tu sabes que é um dia perigoso não é? As pessoas não estão mais saindo de casa com medo da besta e eu não gostaria de imaginar aquela fera entrando na igreja em plena missa. Estou me protegendo como posso, a mim e a todos.

- Espero que peguem logo esse lobisomem, ele matou nossa mãe, é o que mais desejo, a morte do bicho, estou tentando ajudar os caçadores a pegá-lo nas noites de sexta.

Ronaldo suava frio após ter escutado o irmão dizendo “é o que mais desejo, a morte do bicho”, pegou um lenço e rapidamente limpou a face.

- Irmão, tu não deves desejar a morte dos outros, nas sextas ele pode ser um bicho, mas nos outros dias é humano, como todos nós - advertiu o padre.

- Desculpe irmão, sou apenas um simples pecador.

- É uma pessoa de ótimo coração também, pecadores todos nós somos.

Às oito da noite todos saíam da igreja e o padre arrumava o altar, retirando o que devia ser limpo e varrendo-a. Antes de dormir, pedia ao pai que zelasse pela saúde de José e pela segurança de todos da pequena cidade, que os livrasse da besta.

Todas as noites de sexta-feira, Ronaldo sumia, ninguém da cidade sabia onde ele estava, aqueles que tinham coragem de sair naquele momento, geralmente mendigos ou pessoas sem teto que vagavam sem rumo pela cidade, podiam ouvir choros vindo da casinha atrás da capela, provavelmente era o irmão do padre, que se sentia solitário ali sozinho na noite obscura.

Após notarem que Ronaldo não estava na cidade nas sextas, o povo passou a desconfiar dele, “quem diria, o padre, justamente o padre da nossa cidade suspeito de ser a besta” comentavam os habitantes indignados. Os caçadores vasculhavam o matagal que cercava a cidade na noite escura em busca de pistas ou da própria fera, todos eles armados até os dentes.

De três em três domingos, eles pediam a Ronaldo que lhes deixassem pegar a cera das velas que foram utilizadas somente nas missas de domingo, segundo a lenda, o lobisomem só poderia ser morto com bala untada com cera que queimou em três missas de domingo ou em Missa-do-Galo. Agora, suspeitando que Ronaldo era a fera, os caçadores olhavam de um jeito estranho para ele e o padre sentia isso, havia medo e receio nos olhos deles.


Continua...

Boa Noite Vovó!

Em meu quarto escuro, banhado pela luz do luar, eu dormia muito bem após um ótimo dia, até ser acordado no momento em que beijaria a mulher da minha vida, "Que o maldito que me acordou seja amaldiçoado sete vezes!" pensei furioso. A porta rangia, um som agudo e irritante, virei o rosto para lá, forçando a vista, uma silhueta muito conhecida estava parada ali. Aos poucos fui reconhecendo cada detalhe do que estava acontecendo: uma bengala, uma faca, pantufas...

- Vovó? - A maldita não me respondia, mas eu tinha certeza que era ela, embora seus olhos outrora verdes estivessem sem cor e sua pele mais pálida do que de costume (uma tarefa muito difícil para alguém que usa 10 quilos de maquiagem no rosto).

A velha gritou enquanto corria em minha direção, o mais rápido que pôde, com sua bengala, fazendo um barulho engraçado, como se um anão usando um sapato de madeira corresse pelo quarto; a faca estava pronta para desferir o golpe. Desviei da facada por muito pouco, subestimei a vovó. Durante o ato o braço dela tinha estalado e o punhal havia caído no chão. " Vovó! Pirou de vez!?", ela me respondia com grunhidos indecifráveis, resmungos de uma velhota, agora tentava me acertar com a bengala, a cada tentativa se desequilibrava e se apoiava no primeiro suporte que via pela frente. Me vi obrigado a reagir, soquei o queixo da vovó, sua dentadura voou e caiu dentro do meu aquário; ela revidava com algo inesperado, seus seios que quase batiam no chão agora vinham como um chicote de encontro a meu rosto, me atingiram em cheio e fui abatido, tive sorte por aquele troço não produzir mais leite. Rapidamente afundei meu punho no estômago da velha, me arrependi, pois tomei um banho de vômito. Vovó ao se curvar, dera um jeito na coluna.

- Dor na coluna vovó? - Perguntei sarcasticamente - Deixe-me dar um jeito!

A segurei pela banha e pelo vestido e a joguei de encontro a janela. A anciã agora caía do segundo andar da casa e se estatelava no asfalto.

Não sei o que havia dado na vovó, mas boa coisa não era.

Que Deus lhe Pague

Um fim. Enfim, a última palavra que eu pude ouvir fora:não; uma negação. Fui daquela para melhor com um sentimento de frustação, morto pela vítima, destinado ao inferno do cão. Abri os olhos da alma, observando com calma toda aquela serenidade atípica, a alva cor que se espalhava por todo o cenário. Eram nuvens? Era um sonho? Um homem velho e barbudo me chamava. "Meu caro, o que tu fazes aqui?", velho idiota, se ele não sabia, como eu saberia? Me mandou entrar pelo portão dourado entre a parede branca. Andando pelo vazio sereno eis que escuto uma voz, vinha de todos os cantos, "Péricles, não foi um bom filho, não posso deixá-lo ficar". Todo o branco avermelhou-se, estava quente como o inferno, "ah não, era realmente a casa do cão", os diabinhos vinham até mim sorrindo e lambendo os beiços. Cada um agarrava uma parte de meu corpo e com uma facilidade tremenda as mutilava; braços, pernas, tronco e cabeça, os monstrinhos se divertiam a beça...

Acordei daquele pesadelo horrível, fiquei sentado na cama, enxugando o suor em minha testa. Não estava me fazendo bem matar jovens toda semana, já não bastava a polícia sempre me torrando o saco, como eu iria realizar os desejos de mamãe assim?

Me levantei e fui lavar o rosto, acabei vomitando na pia, não estava nada bem de saúde. Vesti meu casaco, pus o facão no bolso interno e saí para a rua fria. Perto da avenida, uma velha tentava atravessar a pista, de repente desequilibrou-se e eu fui movido por algo que não pude explicar, sem pensar duas vezes, fui ajudá-la. Ao me aproximar, a levantei e a coloquei na calçada, ela me agradeceu sorrindo. Foi uma sensação boa para mim, lembrava o sorriso de minha mãe.

- Não! - exclamou a velha com os olhos arregalados.

A velhinha tomou um banho de sangue quando fui levado pelo caminhão em alta velocidade, aquela expressão horrorizada na face dela foi a última coisa que vi em vida.

"Está quente aqui", eis o preço que pago por uma boa ação.

Aracnídea (Parte Final)

- Para onde iremos querido?

- A casa da minha mãe é bem grande, vamos ficar por lá até que encontremos outra casa - respondeu meu pai.

- Está bem... Peter e Jackson, os dois, vão para o quarto, arrumar as coisas, amanhã vamos embora - completou mamãe.

Meu quarto estava uma verdadeira bagunça, eu não tinha a menor coragem de ficar sozinho arrumando meus brinquedos e minha cama. Peguei uns brinquedos que estavam no chão e os coloquei de volta no baú. Com meu irmão no quarto eu não podia temer a nada, então aproveitei para arrumar a cama, mesmo sabendo que aquela era a minha última noite na casa, não queria perder o hábito.

A terceira noite havia chegado e trazia com ela os meus medos. O escuro sempre me assustou, as pessoas falam que não devemos ter medo dele, porque não tem nada de mais, mas gostaria de saber porque todas as piores coisas só acontecem à noite e por que as malditas aparições também só aparecem ao anoitecer. Agora eu sabia o motivo dos humanos terem medo do desconhecido.

Evitei ficar sozinho naquela noite. Não sei por que, mas aquelas coisas só perseguiam a mim quando eu não estava acompanhado de ninguém, meu irmão não dera sinal algum de que algo estava pertubando ele também.

Já era a hora de dormir, eu e meu irmão fomos para o quarto após termos escovado os dentes. Tudo parecia bastante tranquilo, a mulher aranha não tinha aparecido nenhuma vez e eu estava achando que dormiria em paz. Meus olhos cerravam-se quase automaticamente devido ao sono e em poucos minutos pude contemplar a imagem de minha mãe em meus sonhos, ela estava em um campo de flores amarelas dançando com uma bailarina, o rosto da mulher aracnídea apareceu de repente.

Abri os olhos assustado, alguém gritava no meio da madrugada, uma mulher, mamãe. Meu quarto estava sendo iluminado apenas pela luz fraca do abajur, via meu irmão sentado na cama com os olhos arregalados, eu estava querendo saber o que estava acontecendo, pondo os pés no chão gelado, saí da cama.

Chamei meu irmão para me acompanhar, Jackson apesar de mais velho, era mais medroso do que eu. Abri a porta devagar, o corredor estava coberto com uma escuridão quase total, não me atrevi a olhar para o quarto no fim dele, aquele em que o tio Les dormiu, sei que eu não iria gostar nem um pouco do que veria se virasse a cabeça para a direita, por isso mantive meu corpo imóvel, apenas olhando para a parede a minha frente, iluminada pela luz alaranjada que saía do meu quarto.

- Mano, pega a lanterna - pedi.

Jackson foi até o baú e o vasculhou, achou a velha lanterna à pilha e a trouxe para mim, saimos devagar do quarto, ele andava atrás de mim, com certeza estava sentindo o mesmo que eu, que alguém olhava para ele lá do quarto do fundo do corredor, obviamente hesitamos em olhar para trás.

Abri a porta do quarto de minha mãe, ela e meu pai olharam assustados para mim.

- O que foi pai? - perguntei.

- Sua mãe viu uma coisa horrível filho - papai abraçava minha mãe, que chorava sem parar.

- O que?

- Nada filho, nada. Podem dormir hoje com a...

A porta do quarto bateu com força e todos se assustaram, depois a maçaneta girou sozinha e a porta abriu devagar, rangendo. Lentamente, a cara da bailarina sem expressão surgia na fresta.

- Mas que... - meu pai perdeu a voz.

Eu, meu irmão e minha mãe berrávamos de medo. A criatura não entrou no quarto apenas retornou a cabeça de volta à escuridão, devagar, assim como apareceu.

A porta do guarda roupa dos meus pais abriu e de dentro saía uma menina loira de vestido branco, rapidamente todos se sobressaltaram e correram para o corredor, em completo estado de pavor. A adrenalina preenchia todo meu corpo, eu suava frio enquanto sentia um calor irritante. Todos desceram a escada, enquanto eu escorregava pelo corrimão. Lá embaixo percebi que a porta do quartinho debaixo da escada estava aberta.

Bodes chifrudos humanóides saíam um a um do pequeno cômodo, todos pararam em círculos, suas gargantas sangravam sem parar, o sangue escorria pelo chão. Tomados pelo terror, minha família agora tentava abrir a porta, sem sucesso, alguma coisa nos impedia de abrí-la. Os caprinos já não estavam mais lá, agora o espetáculo havia começado no hall de entrada, uma música de ninar, daquelas que saem de caixinhas, tocava no salão, enquanto a bailarina, aquela que eu conhecia tão bem, saía do quartinho e começava a dançar, uma apresentação que poderia ser bela, não fosse o fato de que a mulher tinha um rosto de plástico, inexpressivo, e que aquilo não combinava em nada com o ambiente.

Todos nós assistíamos apavorados ao show, a bailarina agora fazia malabarismo com a própria cabeça, a tão conhecida cabeça aracnídea. Sombras passavam pelas janelas, gritos podiam ser ouvidos nos quartos do andar de cima, a menina de vestido branco chorava na cozinha e risadas pareciam sair da tapeçaria no centro do hall. Não aguentávamos mais tudo aquilo, não podíamos fazer nada além de contemplar aquele show de horrores vindo diretamente do mundo dos mortos. Chorávamos e berrávamos, pedindo para que aquelas coisas fossem embora, fechei os olhos com força, uma enxaqueca tomava conta de meu cérebro, de repente tudo parou.

Quando abri os olhos não havia mais nada no hall, apenas eu e meu família. Olhei para o relógio, eram cinco e meia da manhã, o primeiro e fraco raio de sol brilhava no horizonte. A porta atrás de nós, agora abria, gentilmente. Fomos para fora da casa, meu irmão foi para o balanço, enquanto eu e meus pais observávamos o casarão.

- Bom, parece que acabou - comentou meu pai.

Mais tarde no mesmo dia, apanhamos nossas malas e fomos para a casa da mãe do papai, abandonando aquela casa cinzenta para sempre.

Em meus quinze anos, voltei para rever a velha casa mal assombrada, eu e um grupo de amigos, que não acreditavam em minhas histórias sobre o lugar, muitos deles estremeceram só de ver o casarão. Nesse dia, encontrei um velho senhor que se encontrava parado observando a casa também, resolvi falar com ele.

- Bom dia senhor, conhece a casa?

- Olá meu jovem, se a conheço? - O velho riu - Sou o dono dela.

- Dono!? O senhor tem quantos anos?

- Esqueça jovem. Eu sei que morou nela, é o pequeno Peter não é?

- Como sabe? Nunca vi o senhor.

- Ah, mas eu o vi, seu pai me mostrou uma foto da família enquanto conversávamos para entrar em acordo com a venda da casa.

- Nossa, que memória hein?

- A idade me tirou muitas coisas mas não a memória, sou um velhote diferente.

- Senhor... Você sabe que a casa...

- É mal assombrada, eu sei.

- Sabe?

- Deixe-me contar uma história rapaz. Eu e minha esposa éramos muito jovens quando mandamos construir esta casa, tínhamos em mente muitos planos bons para o futuro, o primeiro deles, um filho. Nossa menina, Amelie, tinha nascido, os olhos dela eram tão claros e os cabelos eram loiros como os meus, na época que eu os tinha claro. Eu estava me dando muito bem no trabalho, ganhava cada vez mais e assim ia aumentando o tamanho da casa. Com o dinheiro também viajávamos bastante. Em uma dessas viagens, compramos uma tapeçaria no mercado negro, idéia da minha mulher, ela era maluca. A ilustração era bonita, mas tenho que admitir que era de muito mal gosto, várias pessoas desfiguradas olhavam para um lugar em comum, onde não tinha nada. Pouco tempo depois de termos chegado de viagem, minha esposa teve um ataque cardíaco e morreu, depois de alguns dias, minha filha havia caído da escada e tinha falecido também. Morando sozinho, passei a ver Amelie e Nora, minha mulher, andando ou dançando pela casa, o sonho dela era ser uma grande bailarina. Certo dia eu fui olhar a tapeçaria e adivinhe só, minha mulher e minha filha estavam nela, ocupando o lugar que estava vazio, eu achava que estava ficando louco, então me mudei.

- Então... Tudo aquilo... Meu deus...

- Acho que agora você deve estar associando as coisas meu jovem.

- Espere um pouco, já volto!

Fui até o casarão e abri a porta, que estava mais velha do que nunca. No hall de entrada olhei para a tapeçaria, todos os rostos deformados olhavam para a figura de uma bailarina e sua linda filha.



FIM

Aracnídea (Parte 2)

Todos pareciam bastantes tranquilos enquanto comiam as tradicionais panquecas de minha mãe, estava começando a achar que apenas eu estava paranóico e que aquele dia certamente seria pior do que o anterior.

A campainha havia tocado, Tio Les tinha chegado. Minha mãe pediu para que meu irmão fosse abrir a porta, ele por ser mais velho sempre era o mais cobrado. Aborrecido, ele foi e eu o segui até a porta que levava ao hall de entrada.

Tio Les nunca mudou, aquele cabelo loiro extremamente arrumado, que mais parecia uma peruca, estava parcialmente coberto por uma boina marrom. Ele nunca tirava o charuto da boca, quando deixava de fumar um, logo pegava outro, mesmo que não fosse tragá-lo. Sorriu para meu irmão com aqueles dentes amarelados, um sorriso nada sincero, que estava sendo devidamente retribuído.

- Olá meu jovem! - cumprimentava-me.

- Oi tio Les.

- Les Paul meu jovem, Les Paul.

Provavelmente por estar cansado de tanto disfarçar, deixou a mala perto da entrada da casa e se dirigiu logo à cozinha.

- Hmm, esse cheiro não me engana! São as panquecas da Laura! - Gordo do jeito que era, dava para entender como ele tinha um olfato tão apurado.

Pude ouvir as vozes na cozinha, meus pais o cumprimentando. Acho que apenas eu e meu irmão entendíamos que aquele gordo nos visitava apenas para suprir a sua necessidade de encher a barriga que ele tratava com tanto carinho. Apesar de tudo, o tio Les era um homem bem humorado, sabia como nos fazer rir, todas as vezes que nos via trazia novas piadas e agora já estava contando-as na cozinha, com um pouco de dificuldade, pois sua boca já estava saturada de tanta panqueca.

- ... E adivinhem só! O homem havia comido todo o cocô pensando que era chocolate! - A risada alta dele ecoava por todo o cômodo. Meus pais riam juntos, mas eu não vi muita graça na piada, o tio Paul já tinha contado melhores.

Após ter comido quase todas panquecas, por pouco não devorando a minha também, o tio Les estava na difícil tarefa de levantar o traseiro e manter-se de pé. Depois desse feito incrível, ele voltou ao hall de entrada, para buscar as malas.

- Laura! Onde eu vou dormir!? - Gritava o tio Les, lá do hall.

- Suba as escadas e entre no último quarto do corredor!

O último quarto do corredor... O mesmo em que eu tinha visto uma pessoa entrando na minha primeira e maldita noite, não faria questão de contar uma coisa dessas para o tio Paul, até por que ele não acreditaria. Les com certeza não iria dormir bem naquela noite e para a infelicidade dele os dias só tinham cerca de 12 horas de claridade.

Meu tio já tinha guardado as coisas no quarto e agora descia com seus passos pesados, perguntando se o almoço iria demorar ou não para sair. Subi até meu quarto para pegar uns brinquedos, estes estavam guardados num grande baú de madeira. Quando o abri, fiquei procurando por meu boneco favorito. O quarto estava bastante silencioso, qualquer ruído era perceptível.

A porta havia fechado e eu ouvi passos leves se dirigindo em minha direção.

- Mãe? A senhora viu aquele boneco que eu gosto? - Perguntei, estava concentrado no que estava fazendo.

Vendo que ela não tinha respondido, me dei conta de como estava frio ali.

- Mamãe?

Criando coragem para ver o que me esperava, lentamente me curvei, tinha certeza de alguém me observava ali parado, sentia aquela presença fortemente. Não havia ninguém lá, meus pêlos estavam arrepiados e meus pés dormentes. Corri em direção à porta, não estava mais interessado em brinquedo algum, mas parece que eles estavam interessados em mim, uma mão de palhaço saía do baú, mexendo os seus três dedos vermelhos, em seguida aparecia a face horrenda do brinquedo, aquela maquiagem negra ao redor dos olhos infantis e o sorriso macabramente grande. Agora o pequeno palhaço descia com trabalho do grande baú, parecia difícil para ele ficar de pé; após manter o equilíbrio, ele veio andando até mim, bem devagar, caminhava como um bebê aprendendo a andar, as pernas de algodão, tortas.

Eu tentava abrir a porta, mas parecia que ela estava emperrada, como se alguém estivesse segurando a maçaneta do lado de fora, o boneco estava cada vez mais próximo de mim, sempre sorrindo. Nunca gostei de palhaços, mas os pais não entendem os temores dos filhos, haviam comprado este boneco para mim, como se toda criança gostasse de palhaço. Não pensei em outra opção além de pedir socorro.

- Mãe! Socorro! Socorro!

Não sei se ela estava me ouvindo, mas eu gritava o mais alto que podia, enquanto o palhacinho com cabeça de porcelana, agora rastejando, vinha em minha direção. Pude ouvir minha mãe e meu pai agora do outro lado da porta, tentando abrí-la, enquanto gritavam desesperados.

O palhaço estava quase encostando as mãos em mim.

- Não! Sai daqui! Não! Não! Sai!

Eu suava como se tivesse dado duas voltas no quarteirão. Por reflexo chutei com toda a força a cabeça do boneco, esta explodiu, como se fosse uma cabeça humana, enchendo o quarto de massa cefálica e um odor horrível de morte, o pequeno palhaço agora agonizava no chão, enquanto saía um líquido vermelho denso e gelatinoso de onde outrora estava sua cabeça.

Minha mãe conseguiu abrir a porta, me encontrou chorando no chão em frente ao palhaço.

- Filho o que houve!? O que foi isso!? - Vendo que eu não respondia, tentou chamar minha atenção mais uma vez - Filho!

Agora eu finalmente tinha escutando o que ela estava dizendo. O quarto agora estava limpo, nenhum sinal de sangue ou tripas, apenas os pequenos fragmentos de porcelana espalhados pelo chão.

- Vamos! Conte pra mamãe!

- O-o palhaço... Tentou me atacar.

- Quê? Filho... Isso é coisa da sua imaginação, ele era apenas um boneco, como ia poder se mover?

- Não! Não é! E- ele se moveu sim! Eu vi! Ten- tentou agarrar minhas pernas!

- Calma amorzinho, dá um abraço aqui na mamãe.

Com isso pude me acalmar, nada como um abraço materno, nos sentimos seguro com todo aquele calor agradável.

- Mamãe, eu juro que é verdade, ele se moveu.

- Tudo bem filho, tudo bem. Agora vamos lá embaixo ajudar a mamãe a limpar o quartinho da escada - com isso desvencilhou-se do meu abraço e me levantou pelas mãos.

Limpar aquele pequeno cômodo seria uma tarefa difícil, uma camada grossa de poeira cobria todos os objetos ali presentes como se fosse um enorme lençol. Passado pouco tempo eu já estava começando a espirrar, e minha mãe havia pedido para eu sair dali. Durante o resto da tarde brinquei com meu irmão no jardim.

Já começava a escurecer, a lua cheia já estava no céu, pedindo ao sol para ir embora de vez. Mamãe agora me chamava para jantar, estava bem cedo, seis horas da noite, mas na companhia do tio Les, que cobrava a janta mesmo depois de ter acabado de comer o almoço, ela não aguentaria ouvir ele pedindo a janta por muito tempo.

- Hmm! Delícia! Posso sentir o cheiro do molho da macarronada! - Tio Les comia com o nariz também, como um aperitivo para o que viria goela abaixo depois.

Com todos sentados em suas devidas cadeiras, mamãe servia a macarronada e a salada na mesa de jantar, tio Paul avançava na macarronada como um gavião em pleno mergulho para agarrar sua presa.

Fiquei até com medo de estender o talher para pegar minha parte, o olhar insaciável do meu tio demonstrava que ele poderia enfiar o garfo na mão de quem tentasse. Então todos esperaram até que ele fizesse a típica montanha em seu prato.

- E então Paul, como andam os negócios da família? - perguntava meu pai, enquanto tentava fisgar uma pequena almôndega.

- Ah, aquela joça? Está indo de mal a pior se quer saber! Hoje em dia ninguém está mais querendo saber de produtos naturais!

- Uma pena... - disse mamãe, concentrada em pegar uma grande folha de alface.

- Uma pena é? Pena quem tem é pássaro! Vamos ter que vender outras coisas se quisermos nos manter.


Para variar outra fala idiota do titio, acho que o cerébro dele havia descido para o traseiro. Aquela conversa sobre negócios não me animava nem um pouco, torci para que aquele jantar em família acabasse logo, para que eu pudesse ir dormir.

O que eu mais desejava no momento era estar de volta às aulas, para passar o máximo de tempo possível longe daquela casa. A primeira noite tinha sido uma tortura, em plena luz do dia, embora meu quarto estivesse sempre escuro, brinquedos me atacavam. O que eu podia esperar de mais uma noite? Uma criança normal estaria traumatizada, mas felizmente, eu não era uma criança normal.

Tio Les já estava percebendo que se comesse um pouco mais iria explodir, então decidiu parar. Minha mãe agora levava os pratos à pia, sorte dela que o titio só usara um prato em todas as suas repetições. Agora ele levantava, com a dificuldade de sempre e claro, fazendo a cadeira ranger.

- Jantares sempre me deixam sonolento! Vou para meu quarto - avisou Les.

Uma súbita vontade de fazer o número dois me abatia naquele momento, corri para o banheiro do andar de baixo. Enquanto estive ali, sob o silêncio, pude ouvir ao longe as conversas que vinham da cozinha atravessando as paredes. Papai e mamãe comentavam a meu respeito, "Você não acha que tem algo de errado com essa casa?" opinou meu pai. Certamente tinha e no momento só eu sabia, por enquanto.

Não sei exatamente quanto tempo passei ali, mas certamente foi muito. Voltei a cozinha para dar boa noite à mamãe, que agora estava cortando carne na tábua de madeira, estranhei, por que estava fazendo aquilo? Ela sempre ia para o quarto dormir, logo após a janta.

- Mamãe? Está cortando carne?

Ela não respondeu.

- Mamãe, a senhora está bem? - Me aproximei dela pela lateral.

Realmente ela estava cortando carne, mas não era para preparar uma refeição. Ela batia com força a faca em cada dedo, duas vezes, para quebrar o osso, primeiro vinha um som abafado, depois um baque, quando a faca atingia a tábua, ia arrancando-os um a um. Jogou os cinco dedos dentro de uma tigela e virou-se para mim rapidamente, estendendo-a , agora preenchida com um cereal de dedos, leite, sangue, dedão, anular, mindinho...

- Aceita um cereal?

Agora via aquele rosto que reconhecia tão bem, a maquiagem escura ao redor dos olhos, o batom forte, a pele pálida, era a bailarina que outrora estava em um corpo de aranha. Eu tinha caído no chão com o susto, não conseguia gritar, havia perdido a voz, entrei em pânico, não conseguia raciocinar direito.

Estalos podiam ser ouvidos da garganta da mulher, a cabeça maquiada agora parecia estar fora do lugar, se entortava de uma maneira estranha. O corpo aracnídeo da bailarina havia saído pela garganta de seu fantoche humanóide, que caía no chão,com um som de carne após levar uma martelada. A nojenta bailarina aranha agora andava sem rumo pela cozinha, comendo os dedos que encontrava no caminho.

Finalmente consegui me levantar e fui embora correndo o mais rápido que pude.

Chegando em meu quarto, tranquei a porta e me joguei na cama, pegando o lençol para me cobrir o mais rápido possível. Dei uma rápida olhada para a janela, e ela já estava lá, a aranha, parada e inexpressível, a observar o quarto. Como eu gostaria de estar no lugar do meu irmão agora, que dormia tranquilamente sem nenhuma assombração para pertubá-lo.

Fechei os olhos com força, me esforçando para não abrí-los em momento algum. Agora a aranha passeava sobre as bordas da minha cama, fixando aquele olhar mórbido em mim, pulou em meu rosto.

- AAAAAAHHH!

Acordei daquele pesadelo com um grito que se prolongava além dos sonhos, alguém estava gritando pelo corredor em pleno início da manhã, reconheci os berros, era o tio Les. A gritaria agora estava na sala, pelo visto ele não teve uma boa noite de sono, como eu suspeitava.

Mamãe, papai, eu e meu irmão, fomos ao hall de entrada para ver o que aconteceu. Tio Paul berrava, enquanto corria sem rumo pela sala.

- Belo casarão esse que vocês arranjaram hein! Que diabos! Que diabos! Eu vou embora daqui agora!

- Calma Paul! O que aconteceu!? - Perguntou mamãe.

- Ora o que aconteceu! Primeiro uma menina de vestido branco sai de dentro do guarda roupa no meio da madrugada! Depois acordo embaixo da cama! Pra mim já chega!

Sem dizer mais nada, meu tio foi ao quarto em que dormira e depois voltou com as malas prontas. Quase caiu da escada ao descer, eu nunca tinha visto o rosto dele tão pálido.

- Passar bem Laura.

Agora ele já estava lá fora ligando o carro e fazendo o que eu também gostaria de ter feito, ir embora daquela casa.

Mamãe e papai agora olhavam para mim com outro olhar, parece que finalmente entenderam que eu estava dizendo a verdade todo aquele tempo.

- Filhinho, desculpe não ter acreditado em você - adiantou-se mamãe.

- Laura, acho melhor irmos embora daqui amanhã, estou começando a achar que as coisas aqui não estão nada bem - concluiu papai.

Finalmente uma idéia sensata de ambos, em pouco tempo eu estaria fora daquela maldita casa.



Continua...

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Aracnídea

Nunca gostei de mudanças, aquela já era a terceira em minha vida (que me recordo), curta vida devo dizer, tinha acabado de fazer 10 anos. Os pais sempre dizem que iremos para um lugar melhor, mais bem localizado ou maior... Como todos sabem, sempre há uma quebra de expectativa quanto a isso.

Naquela vez eu sentia algo diferente em relação à casa para qual estávamos indo na tarde absurdamente calma daquele dia. No carro, eu adorava olhar a paisagem pela janela, todas aquelas árvores secas devido ao Outono passando rapidamente, as milhares de folhas pardas acompanhando a dança do vento. Durante todo o caminho para o novo lugar eu não estava em meu corpo, minha mente viajava juntos com as folhas. Quando voltei à realidade, finalmente havíamos chegado.

Assim que o ronco do motor do automóvel cessou, pude ouvir claramente cada folha seca que ia de encontro à carcaça do carro. Todos saíram do veículo, eu fui por último, como de costume em todas as mudanças. Achei estranho a maneira que encontrei eles assim que saí, estavam todos parados, olhando para o casarão a frente deles. Eu não podia negar que realmente era enorme, "grande e assustadora" pensei.

Parecia uma típica casa de filme de terror americano dos anos 80, com um balanço de madeira que ia e vinha num ritmo pertubador, aquele barulho de correntes enferrujadas que parecia friamente cronometrado, a cada dois segundos o mesmo ruído se repetia. As folhas secas cobriam a escada de madeira que levava à porta de entrada, aquela sinistra porta escura, não estava podre nem úmida, mas parecia estar. O casarão era todo feito de madeira, a parede branca da fachada era ofuscada por uma sombra densa que com certeza dava um frio na espinha de qualquer um que passasse por ali.

Não me admiro que um imóvel imenso daquele tivesse sido vendido por um preço tão baixo aos meus pais, ninguém queria ou sequer pensava em morar ali. Bem, eu fui um dos sortudos que iriam conhecer aquela coisa, as expectativas não eram nada boas.

Todos caminharam em direção à entrada da casa, eu e meu irmão fazíamos isso com certa relutância. Vi minha mãe tirando as chaves do bolso, elas eram grandes e rústicas, assim como a maçaneta e a fechadura da porta, a primeira lembrava o rosto de uma gárgula, nada animador.

Tínhamos entrado na casa. O hall de entrada ainda estava meio enpoeirado, parecia que aquele lugar acumulava teias de aranha muito facilmente, já que o antigo dono do local havia feito uma limpeza geral antes de ir embora.

- Mãe, tem certeza que esse lugar não é assombrado? - disse eu, depois de tanto tempo contendo essa pergunta.

- Assombrado? Claro que não filho! O dono não falou nada a respeito disso. Tenho certeza de que vocês vão gostar bastante daqui.

Infelizmente ela não estava certa, nem a criança mais cética do mundo se divertiria em um lugar como aquele. Os adultos como naturalmente são céticos após conviver tantos anos com a realidade e os duros esforços em manter a família, não se intimidaram com aquele local, ao menos meus pais não.

- Seu tio Les vai vir para cá passar uma noite conosco amanhã - disse meu pai, olhando diretamente para mim.

Meu irmão já estava bisbilhotando os antigos móveis da casa que foram comprados juntos com a mesma. Havia um tapete bizarro no meio do hall da entrada, de muito mal gosto devo dizer: milhares de pessoas olhavam em direção a algo inexistente naquela tapeçaria, algumas delas com deformidades que só poderiam ser notadas se observadas por um bom tempo, havia um velho que parecia estar dormindo, se não fosse pelo lençol manchado de sangue em qual estava deitado, difícil de ser notado se não fosse olhado com atenção.

Quando parei de olhar aquela obra de arte macabra, percebi que estava sozinho naquele hall, rapidamente corri para onde as vozes dos meus pais estavam ecoando. A cada segundo que passava naquela sala gigante, maior era o calafrio que eu sentia.

- Filho! - exclamou minha mãe após me ver entrando na cozinha correndo - Vamos lá em cima olhar o seu quarto novo?

- Certo - certamente não havia entusiasmo algum em minha voz.

Ao chegarmos no quarto percebi que eu e meu irmão teríamos noites de insônia, era bastante obscuro, mesmo que abrissemos as cortinas ao máximo, pouca iluminação entraria ali, nossas camas já estavam lá, eram antigas como os outros móveis da casa, ambas cobertas com um cortinado, aquele cheiro de mofo permamente não saíria de lá mesmo que aquilo fosse lavado milhares de vezes. Mesmo com minha mãe do meu lado, a sensação de que havia alguém atrás de mim apenas aumentava.

- Mãe, estou com fome - qualquer desculpa para sair dali seria válida.

- Certo, vamos lá embaixo, seu pai está preparando uns sanduíches.

Aquele momento em família me fez esquecer por algumas instantes o quão ruim era saber que iria passar dias ou quem sabe anos naquela casa. Enquanto comíamos, nós conversávamos a respeito de qual seria nossa nova escola e também sobre a vizinhança.

- Bom meninos, sei que deve estar sendo um pouco difícil essa mudança para vocês dois, mas também poderão fazer novos amigos na nova escola e na vizinhança que fica perto daqui - comentou minha mãe.

- Mãe, não estou gostando muito daqui - comentei.

- Ah, normal, depois você se acostuma, agora me ajudem a limpar essa mesa.


O momento que eu temia havia chegado, a noite. Em algumas partes da casa, as coisas funcionavam da maneira antiga, infelizmente nos corredores não haviam lâmpadas, então era preciso acender velas naqueles velhos castiçais de prata desgastada. Sempre tive um certo medo de corredores, quando passava por um sentia que alguém estava me seguindo ou que a qualquer momento alguma coisa saíria de uma das portas, temia até aos meus próprios passos que me enganavam, fazendo com que eu pensasse que os passos não eram meus. Esse medo era ainda maior naquele corredor gelado, velho, escuro e silencioso.

Na primeira noite eu tive o azar de ser o último a sair da cozinha para o quarto, estava distraído brincando com a comida. Olhei ao redor, estava completamente sozinho, eu e o silêncio pesado que sempre estava predominante em qualquer lugar que estivéssemos naquele casarão. Minha primeira vontade foi gritar por minha mãe, mas resolvi escolher a outra opção, mesmo sabendo que eu poderia me arrepender depois.

Levantei daquela desconfortável cadeira de madeira, não me preocupei em levar o prato à pia, apenas queria ir logo embora dali. Corri, o mais rápido que pude, o que havia resultado em um tremendo descuido, bati o pé esquerdo na porta que levava ao hall de entrada e caí em cima do grande tapete puído. Todos aqueles rostos deformados olhavam para mim sem expressão alguma, um deles parecia estar segurando uma faca, tinha seu olhar voltado para a mulher do lado esquerdo. Rapidamente tratei de me erguer e subi as escadas que levavam ao corredor onde estava meu quarto. Quando parei próximo ao corredor, pude ouvir sussurros vindo lá de baixo, mais precisamente do quartinho debaixo da escada.

"Certo... Certo... Certo... Certo... Certo... Certo..."

Estava difícil de respirar, uma pressão invisível apertava os meus pulmões, espremia cada artéria minha. Arfando, andei rapidamente em direção ao meu quarto, o corredor parecia interminável, felizmente meu irmão tinha deixado a luz acesa, mas isso não impedia aquele lugar de ser assombroso. Jurei ter visto uma silhueta escura passando pela porta aberta no final do corredor antes de eu ter entrado em meu quarto.

Meu irmão estava lendo um livro, ele não me parecia nada tenso, talvez porque estava viajando com aquela leitura, mas eu não conseguia nem falar. Para piorar as coisas, minha cama ficava de frente à uma pintura que meu pai tinha feito de um rosto de uma bailarina, que em qualquer outro lugar, em qualquer outra hora, seria uma ilustração bonita, mas ali naquela casa maldita, era mais uma obra de arte bizarra.

Deitei na cama, dei boa noite ao meu irmão e fechei os olhos, torcendo para que o dia seguinte chegasse rápido. Várias imagens e momentos se misturavam em minha cabeça: os momentos que antecederam a mudança, a primeira vez que vi a casa, o vulto entrando no quarto de visitas, os sussurros que viam do quartinho embaixo da escada...

O mundo dos sonhos já havia chegado, mas fora interrompido repentinamente, por uma sensação estranha que mesclava um frio intenso a um calor discreto, abri os olhos. Me neguei a acreditar que aquilo estava ali, olhando para mim, cerrei os olhos novamente, mas ao abrí-los vi que a coisa ainda não tinha desaparecido, estava em cima do meu lençol, me observando.

Meu coração acelerou, as batidas rápidas e fortes, combinadas com o calor interno e o ar congelante fizeram com que minha respiração fosse prejudicada, eu sugava o máximo de ar que podia com a boca, mas não parecia suficiente, os pêlos de meus braços arrepiaram-se como se estivessem magnetizados por uma televisão ao ser ligada e um dedo invisível parecia passar lentamente por toda minha coluna, causando o tão conhecido calafrio.

A bailarina estava em cima da minha cama e fixava o olhar em mim, como se eu fosse seu maior objeto de desejo, não piscava em momento algum, ou melhor, parecia incapaz disso. Eu deveria dizer "a cabeça da bailarina" pois seu corpo estava ausente, este fora substituído por um tronco de uma aranha e seus respectivos 4 pares de patas peludas, que se mexiam de uma maneira nojenta, para cima e para baixo, lentamente. A sombra forte presente nos olhos da mulher dava maior destaque às suas verdes pupilas mórbidas, como se a tivessem tirado do quadro, a encaixado no corpo aracnídeo, sem se preocupar em pôr expressões naquela face. O forte batom carmecim em seus lábios carnudos davam maior constraste àquela pele pálida como a de um cadáver.

Não gritei pois isso faria meu irmão acordar, o máximo que pude fazer foi cobrir-me com o lençol, esperando que aquilo fosse embora. Passado um tempo que me pareceu muito longo, a criatura desceu pela perna de madeira da minha cama e lentamente saiu pela porta do quarto.

Eu sentia o clima ficar mais pesado ao meu redor, com certeza não conseguiria dormir naquela noite, algo me dizia que alguma coisa se aproximava de mim. Olhei para cima e a mulher com corpo de aranha descia traçando sua teia, vindo em minha direção. Não pude aguentar mais, saí gritando pelo quarto e fui correndo até onde meus pais dormiam, eles acordaram assustados e meu irmão também.

- Filho! Meu Deus! O que foi!? - perguntou minha mãe, com um olhar perplexo.

- U-uma... Uma, uma mulher! U-uma m-mulher aranha!

- O quê? Filho, foi só um pesadelo, vai, volta a dormir - isso que o meu pai disse seria a resposta de qualquer outro pai.

- É, seu pai está certo, volte pra sua cama, não tem nada lá.

- Não! Não vou voltar!

- Ai ai, está bem filho pode dormir com a gente hoje - encerrou minha mãe.

Enquanto eles facilmente deitaram e dormiram, eu fiquei apenas de olhos fechados esperando que o sono chegasse novamente, o que com certeza demoraria.Sem ter percebido eu já estava sonhando, em meus devaneios a mulher aracnídea me observava de cima de um muro amarelo, que aos poucos se enchia de musgo...

A manhã havia chegado finalmente, o galo cocoricava com vigor. Parecia que eu tinha lutado com alguém na noite anterior, me sentia pesado e cansado, acordei suado, não há sensação mais desagradável que esta. Teria permanecido deitado ali o resto do dia, senão fosse o fato de que o tio Les iria nos visitar e dormir na casa naquela noite, "pobre tio Les".

Minha mãe já me chamava para tomar o café da manhã. Com o mínimo de disposição, levantei e fui ao banheiro lavar o rosto que estava repleto de olheiras, em pleno 10 anos de idade, me sentia um velho. Desci para a cozinha, pensando no dia anterior e se tudo aquilo tinha realmente acontecido.



Continua...

Os contos de Lesaint (Parte Final)

- Ah, encontrei... Hoje. Na plantação de trigo.

- Tolo! Não vê que pode ser um dos livros do senhor que ele deixou cair!? Ah, se ele descobre, você está morto, precisa se livrar disso.

- Tudo bem mamãe... Mas posso ler uma história? Aqui diz que são histórias de ninar.

- Leia, filho...

O irmão mais novo estava sentado em uma das cadeiras da mesa de jantar, observando a cena, ouvindo a história do irmão atentamente. No começo parecia algo bastante inocente, mas aos poucos os traços de perversidade começaram a surgir: "...e ela comeu a própria cabeça".

- Chega! Pare de ler essa porcaria! Onde já se viu!? Que espécie de contos de ni... - a mãe deles não chegou a concluir a frase, ficou paralisada de boca aberta.

- Mamãe?

Os olhos dela começaram a revirar e lágrimas de sangue começaram a descer deles e pouco depois, de seus ouvidos. Um barulho esquisito parecia sair de sua cabeça, como se os ossos do crânio estivessem se esmigalhando e de fato estava, a cabeça parecia que estava sendo comprimida, esmagada, estava afundando. Os olhos começaram a saltar para fora caindo no chão junto com os restos de massa cefálica, agora a cabeça estava disforme e afundava para dentro da garganta dela, o maxilar se mexia como se estivesse mastigando algo e de fato estava, a mãe dele estava devorando a própria cabeça, em pouco tempo, os últimos fios de cabelo haviam sido engolidos pela garganta da mulher e ela desabou no chão.

Os meninos começaram a gritar desesperados, logo o pai deles e a avó chegaram no local e viram o sangue por toda parte e o cadáver da mãe dos garotos. O pai, chorando e suando frio, perguntava gaguejando aos filhos o que tinha acontecido e então o irmão mais novo contou tudo, que depois do "conto de ninar" a mãe devorou a própria cabeça.

Obviamente ele não acreditou naquele absurdo, mas não conseguia provar que havia sido alguma outra coisa, já que não havia armas nem nada perigoso no local. A velha chorava ajoelhada perto do corpo da mulher. O pai pegou o livro negro e o jogou em uma fogueira. Pouco depois, o senhor Lesaint apareceu por lá.

- O que diabos aconteceu por aqui? - disse ao mesmo tempo que entrava na casa dos servos, viu o cadáver da mulher - Mas que...

- Senhor, nós podemos explicar! - adiantou-se o pai.

- Não me expliquem nada seus sádicos! Tratem de se livrar desse corpo ou os próximos serão o de vocês! Bah! Um a menos para trabalhar, como esperam me sustentar assim seus imundos? - e foi embora de volta a sua casa, resmungando coisas incompreensíveis.

Durante os dias que se seguiram, o menino mais velho permaneceu imóvel, não falava, não ouvia e nem sequer piscava os olhos, estava em estado de choque pela morte da mãe. O pai estava desesperado, não sabia o que fazer, ou melhor, não havia o que fazer. Todos os dias ele alimentava o garoto com sopa e rezava, na esperança que um dia ele voltasse a falar e a se mexer. Em uma certa noite, o pai dos meninos estava em um sono profundo, repleto de pesadelos, sonhava que estava sendo controlado como uma marionete. Nesta noite, ele acordou com os olhos vidrados e foi até o filho mais novo, pegou-o pelas pernas e foi arrastando-o para fora de casa. Chegou na cova em que o livro tinha sido encontrado e jogou o garoto dentro dela, ele continuava como um boneco, sem expressão alguma. O pai pegou uma pá e começou a enterrar o filho.

No dia seguinte, a velha acordou o pai dos meninos com seus gritos escandalosos.

- É ele! Só pode ser obra dele! Ele voltou!

- Acalme-se mãe! Ficou maluca!? - dizia o filho dela.

- O duende! Oswald! O duende voltou, ele está fazendo tudo isso! Ele levou o seu filho!

- Ah não! Meu deus! O que está acontecendo!? Porque ele levou o Gerald!?

- Não sei! Devemos falar com o senhor Lesaint!

- Está doida!? Ele não vai ouvir a gente!

- Não me impeça Oswald! - então a velhinha foi em direção a casa dos Lesaint, o mais rápido que pôde.

Na noite anterior àquele dia, o filho único de Lesaint havia encontrado um livro embaixo de sua cama, era negro e tinha o título: “Contos de Ninar do Tio Lesaint”,então começou a lê-lo. "... logo após jantarem, garfos e facas voaram contra todos, pregando-os na mesa de madeira e...", o menino fora interrompido, a mãe dele o chamava para jantar.

A velhinha chegou na casa dos Lesaint, bateu na porta, mas ninguém a abria, agora batia com mais força, mesmo assim não havia nenhum sinal de alguém lá dentro. Ela resolveu espiar pela janela. Normalmente os Lesaint já teriam aberto a porta e difamado a velha, quem sabe até teriam dado chicotadas também.

Observando através da janela que dava na sala de jantar deles, ela viu, a chacina em cima da mesa. Estavam todos mortos, todos os Lesaint, pregados na mesa com garfos e facas; a madeira lisa agora tingida de vermelho.

A velha ficou sem ar, sentiu um calor anormal junto com um frio esquisito, mal conseguindo respirar, voltou para o seu casebre, caindo inúmeras vezes durante o caminho.

- Oswald... Oswald!

- O que foi mãe!? - Oswald vinha correndo dos fundos da casa - Os Lesaint fizeram algo com você!?

- Estão mortos... Todos eles, todos os Lesaint!

- O QUÊ!? Como... Como isso foi acontecer!?

- Não sei Oswald! Mas temos que ir embora daqui rápido! Antes do anoitecer!

- Sim! Vou pegar o necessário!

- Eu vou buscar o Herald - disse a velha senhora.

No fim da tarde, todos os servos de Lesaint, sabendo de sua morte, haviam deixado o local junto com os servos do casebre. Ali nas imensas terras dos Lesaint já não tinha mais nenhum ser vivo. Apenas os restos mortais de quem outrora estava respirando, que habitarão aquela pequena região para sempre. O pequenino estava sozinho novamente, sem mais ninguém para divertí-lo, só o restava ir para outro lugar.


"Dizem que agora habita as terras dos Blosson, mas não há certeza. Não sabemos se o levaram de volta para o inferno ou se ele ainda está entre nós, mas se ele estiver, que Deus nos proteja."



Fim.

Os Contos de Lesaint (Parte 2)

- Pronto menino, agora vá dormir.

- A senhora acha que o diabinho anda mesmo por aqui?

- Ah, sim. Acredito que seja o mesmo que meu pai capturou anos atrás. Eu com certeza não gostaria de encontrar ele - a velhinha já estava com a cabeça pendendo para o lado direito, devido ao sono.

- Vá dormir vovó.

- Ora moleque, não me dê ordens - com isso levantou-se e dirigiu-se ao celeiro, onde dormia com as alfafas.

- Boa noite vovó - disse o menino às paredes.

O garoto agora estava sozinho, deitado em uns trapos de tecido no chão de madeira rústica, apenas ele e o silêncio, que de tão profundo era pesado, como se tivesse alguém tapando os ouvidos dele. Seu irmão e seus pais dormiam no único quarto do casebre, ele por ser o irmão mais velho, dormia separado dos pais, na sala, agora iluminada somente pelo luar, depois da senhora ter apagado as velas.

O menino já estava caindo em sono profundo, as imagens se misturavam em sua mente, os contos de sua avó, a pedrada que levou do senhor, os dias de trabalho no sol forte e no inverno rigoroso e todas as outras lembranças de sua vida miserável. Ele tinha se acostumado a dormir naquele lugar que cheirava a rato morto, incontáveis vezes já fora incomodado por esses infames animais que quase todas as noites urinavam na mesinha velha perto dos trapos que ele chamava de cama.

Quando estava quase penetrando no mundo dos sonhos, ouviu um barulho perto da velha mesinha, mas não se incomodou, achou que mais uma vez seriam os ratos. No entanto, os ruídos começaram a irritá-lo e ele virou para o lado da mesa para ver o que estava acontecendo, mas ao abrir os olhos não viu nada além da parede de pedra. Cerrou os olhos novamente, dessa vez foi um ruído baixo mas pertubador, parecia alguém falando muito baixo, não era possível definir direito. O som ficava cada vez mais forte, embora continuasse quase inaudível, parecia estar penetrando na parte mais profunda do ouvido do garoto.

Assustado com isso, levantou e ficou sentado em sua "cama", olhando para todos os cantos daquela sala, à procura da origem do ruído. Quando virou novamente para o lado em que estava a mesinha, viu uma pequena silhueta negra embaixo dela, semelhante a uma sombra porém dava a idéia de algo concreto. Era possível assimilar a silhueta à algo de orelhas pontudas e com uma calda longa, estava lá, parado, observando o menino, sejá lá o que fosse aquilo. O garoto estava paralisado, olhando para a pequena coisa, que mexia o rabo devagar, para cima e para baixo, parecia estar analisando o menino. A coisa pequena parou de mexer a calda.

A silhueta pareceu se atrapalhar um pouco antes de falar, como se tivesse usado uma língua errada ao invés de usar a que queria falar, então prosseguiu:

- Olá garoto, qual teu nome? - sibilou a criaturinha, num tom de voz carregado de maldade e falsidade, talvez fosse um esforço enorme para ela cumprimentar o garoto.

- Não vou dizer, você é mal - disse o menino, quase sussurrando, para não acordar os outros.

- Eu? Malvado? - o monstrinho riu - Não sô, apenas gosto de me divirtir - ele admirava o garoto com um olhar cheio de malícia, como se ele fosse um jantar bem saboroso.

- Você não existe. Estou sonhando, vou fechar os olhos e quando abrir vou estar acordado.

O menino fechou os olhos intensamente, rezando para que estivesse realmente sonhando.

- Ei idiota, ainda tô aqui.

O garoto se esforçou para não gritar e rolou para longe de onde estava, ao ver que o diabinho estava mais perto, quando ele abriu os olhos.

- Fique longe de mim.

- Relaxe, eu quero mostrá uma coisa pra tu - ele fitava o menino atentamente com seus olhos amarelados e brilhantes.

- O-o q-que quer?

- Siga eu, vô mostrá pra tu. Não vô machucar.

Após hesitar um bom tempo, vendo a pequena criatura saindo por um minúsculo buraco na parede rumo à noite enluarada, ele resolveu segui-lo. Abriu a porta de madeira, era difícil não fazê-la ranger, mas o garoto conseguiu sair da casa com muita cautela, os outros estavam em um sono muito pesado. Ao sair, deparou-se com a escura plantação de trigo que parecia bastante aterrorizante, devido ao vento frio da noite e da névoa forte que pairava no local. Foi até atrás do casebre, por onde o monstrinho tinha saído e ele não estava mais lá.

- Ei tolo, aqui atrás de tu!

O garoto se virou e olhou para o chão, lá estava a criatura. Parecia ainda mais bizarra vista à luz do luar, era possível ver cada detalhe de sua pele macilenta e negra, o grande e fino nariz balançava a cada movimento do bicho junto com a longa e fina calda negra; os olhos eram bem amarelados, o corpo era magricela e sua expressão sempre demonstrava nojo ao falar com o menino.

- Me segue! - o diabrete correu bastante rápido em direção à uma mata densa e o garoto o seguia, embora seus pés teimassem em obedecê-lo.

Finalmente, depois de uma pequena caminhada que lhe pareceu bastante longa, o menino chegou ao local em que o diabrete estava parado. Demorou um pouco para ver a cruz de madeira que estava diante dele, estava de frente à uma cova; seu coração parecia que ia sair do peito e o ar teimava em não entrar em seus pulmões.

- Vamos pivete, cave isso, pegue o presente pra tu! - ordenou o ser pequenino.

O menino começou a cavar com as mãos aquela terra suja, até que seus dedos, aqueles já calejados com o trabalho duro, enconstaram em algo mais sólido. Continuou a cavar devagar, tirando a terra de cima do objeto, era algo retangular, o menino tirou o objeto da cova e o limpou. Era um livro de capa preta, com coisas escritas em um dialeto estranho.

- Eu chamo ele de "Contos de Ninar do Tio Lesaint", é mágico garoto! Vai gostá! As letras mudam pra quem toca ele!

Agora estavam legíveis as letras que se encontravam na capa: "Contos de Ninar".

- Pivete, leve isso pra casa e conte as histórias pra todos, vá. Vá!

O garoto foi embora correndo muito rápido, com o coração quase saindo pela garganta. Chegando na casa, que se encontrava com a porta aberta, entrou e jogou-se na sua "cama", botou o livro embaixo dos trapos e cerrou os olhos, querendo dormir o mais rápido possível, mas não conseguiu, passou horas pensando no que tinha acontecido e o quão absurdo era tudo aquilo, nesse mar de pensamentos, acabou caindo no profundo mundo dos sonhos.

No dia seguinte, teve que acordar cedo, fora acordado por sua mãe. Todos perceberam que ele estava meio estranho, parecia assustado sempre. Quando o perguntavam se ele estava bem, apenas acenava com a cabeça ou dava um sorriso de leve. Assim se passava mais um dia rotineiro, com muito trabalho pesado, os dois meninos trabalhavam sempre na plantação de trigo, ceifando-o para que em seguida fosse levado ao moinho. As mãos do menino mais velho, o da pedra no olho, que encontrou o diabinho, estavam ensangüentadas, os calos haviam estourado e segurar as ferramentas exigiam um esforço enorme. Em uma das supervisões do Senhor Lesaint, a pequena foice caiu das mãos do garoto, que já não suportava mais a dor nelas. Lorde Lesaint, como se autodenominava, desferiu um golpe violento com seu novo chicote nas costas do menino, mais um ferimento para sua coleção. À noite, a mãe do menino cuidava das costas dele e ele lembrou-se do livro que havia pegado.

- Mamãe, olha o que eu achei - ele foi andando até os trapos e tirou o livro de lá.

- Onde conseguiu isso filho?


Continua...

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Os Contos de Lesaint

Era Feudal, ano de 456.

A famosa idade das trevas, onde a economia não crescia e o clero dominava as massas, a cultura estava estagnada. A igreja mantinha todos os povos aprisionados pelo medo, abusavam da ignorância das pessoas, a dominavam, faziam o que queriam: torturas, orgias, sacrifícios, adultérios...

Tudo que acontecia de bom era obra de Deus e todas as coisas ruins eram relacionadas a Satanás. Assim estava concretizado o apocalipse na Terra, que durou séculos, onde os homens poderosos do clero comandavam todos, como se fossem a mão de Deus.

A denominação "Era Feudal" originado do feudalismo, deu-se com os senhores feudais e seus respectivos feudos, grandes terras que pertenciam inteiramente a cada senhor feudal. Tudo ali produzido apenas servia para a subsistência; quem era senhor feudal, seria sempre um senhor feudal, quem era servo, seria sempre servo.

Ali, naquela era de escuridão, havia um grande feudo chamado Lesaint cujo dono chamava-se Charles Lesaint, os feudos sempre tinham o nome do senhor feudal. Charles vivia com sua família arrogante, todos comiam como porcos; o pouco de comida q restava era jogada aos servos. Os servos mais recentes sequer tinham nome, haviam perdido a linhagem no decorrer das gerações, não sabiam se algum dia já tinham pertencido a alguma família.

Os servos apenas falavam algo quando estavam juntos somente eles. Um grupo menor deles vivia dentro de uma pequena casa acabada perto da plantação de trigo; era uma família: uma senhora, um homem, uma mulher e dois meninos. A diversão dos garotos era ouvir as histórias da velha senhora, que milagrosamente vivia aos 40 anos, o que era bastante tempo de vida na época. A velhinha não era polpada do trabalho pesado, o senhor feudal não perdoava ninguém, todos os servos tinham obrigação de trabalhar para sustentar a família Lesaint.

- Vovó! vovó! - exclamou um dos meninos,que tinha a mão direita ensagüentada de tanto ter trabalhado naquele dia e apenas um de seus olhos enxergava devido a uma pedra fincada no seu outro olho.

- Diga, menino - retrucou a velha.

- Vovó! Quero ouvir outra história hoje!

Esse pequeno grupo dos servos de Lesaint tinha o estranho costume de contar histórias sombrias às crianças e elas, estranhamente, gostavam. Vários desses contos eram
influenciados pelas histórias da igreja, coisas absurdas criadas apenas para afastar os fiéis do paganismo, afastar as pessoas de todo o conhecimento, para que assim o clero
continuasse com o reinado absoluto. No entanto, algumas dessas histórias eram tiradas do imaginário do povo, da sabedoria popular e haviam muitos que acreditavam realmente
nos fatos narrados pelos contadores.

- Calado, sua mãe está dormindo e você devia estar fazendo o mesmo a essa hora - disse a velhota enquanto enchia um copo com a água que estava em um velho balde de
madeira. Levando o copo à boca, tomou tudo de um só gole, o que fez com que parte da água escorresse da boca para o vestido velho que ela usava, então continuou - mas eu
contarei uma história para você moleque, para que durma de uma vez.

- Oba!

- Escute aqui garoto, esta que vou contar, nunca contei a você e na verdade preferiria não contar... Sinto que o meu dia de partir para a salvação está chegando, preciso passar
adiante - tomou mais um gole de água - mas nunca conte pra sua mãe.

- Prometo ficar calado vovó.

- Certo.

A velha levantou e pegou uns trapos que estavam em uma gaveta do criado mudo, ao voltar para o banquinho em que estava foi possível ouvir um estalo vindo de sua coluna
vertebral anciã.

- Veja menino, está vendo esses pêlos escuros?

- Sim vovó.

- São pêlos de duende. Meu pai capturou um quando era jovem. Eu nunca cheguei a ver, ele dizia que seria melhor pra mim não ver a criaturinha. Poucos dias depois encontrei meu pai
morto com um facão enfiado garganta abaixo. Ainda não sei se ele resolveu se matar, não me surpreende, com uma vida dessas, é melhor estar morto mesmo. Tenho suspeitas de
que esse diabinho nojento o matou de alguma forma. Alguns anos depois encontrei uma gaiola enferrujada em uma cabana velha que ele usava pra guardar as ferramentas do
trabalho e dentro dela encontrei esses pêlos negros. Guardo como prova de que o tal duende realmente existiu.

- Vovó, essa é a história?

- Não moleque, não é; mas a história fala de duendes também. Sem mais demora, vou contar logo, já está na hora de dormir, tem que acordar cedo amanhã pra ceifar o trigo.

A velha pegou uma das velas que estavam próximas e aproximou mais do rosto, destacando todas as suas rugas, sujeiras e sua boca desdentada. Finalmente, com uma voz
sombria e etérea, ela começou a narrar.

" Nos tempos antigos, há muitos e muitos anos, um dos demônios de Satanás resolveu fugir para o mundo dos vivos, era pequeno e negro, seus olhos esbanjavam maldade e perversão na sua definição mais crua, deslizava como uma sombra durante a noite, com seu rabo longo e fino sempre balançando de um jeito ameaçador. O monstrinho, tendo escapado do enxofre do inferno, estranhou o ar limpo dos mortais, mas acabou se acostumando em muito pouco tempo. Ele saía à noite pelas fazendas, pregando peças nada divertidas. Certo dia fez com que um garfo caísse "acidentalmente" de ponta no olho de um grande senhor das terras, em seguida, num momento de desespero, o senhor arrancou o garfo com olho e tudo, enquanto gritava pela casa, derrubando todos os objetos que encontrava pela frente. O diabinho pegou o garfo com o olho e foi embora da casa, já tinha sua janta garantida naquele lindo talher de prata. A criaturinha era dotada de poderes engraçados, que o permitia se divertir abusando dos mortais. O lugar em que o pequenino estava acabou sendo chamado de mal assombrado e ninguém mais queria morar ali, logo, a maioria das fazendas da região ficaram vazias. O demônio, triste com a falta de diversão, acabou migrando para uma floresta próxima, para assustar, torturar ou matar os viajantes. Dizem que muitos anos depois, uma tal família Lesaint derrubou parte da tal floresta para construir suas fazendas. O mal sempre rodeou o pequeno diabo, os demônios de Satanás sempre vinham em busca do diabrete para levá-lo de volta ao inferno, no entanto, não se sabe se conseguiram pegá-lo. Dizem que ele ainda anda aqui, pelas terras dos Lesaint, pregando suas peças ou roubando coisas."

(Continua...)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Árvore (Parte Final)

Seduzido pela árvore avermelhada, pelo cheiro forte de madeira velha e por algo que ele mesmo não poderia definir, Jonh estava lá, parado em frente à árvore. Foi andando lentamente até o nó grande e escuro e mais uma vez enfiou a cabeça lá dentro.

Como ele suspeitou, havia desmaiado novamente. Quando abriu os olhos estava de novo em sua casa, como se estivesse em uma dimensão pararela, sentia uma sensação estranha, como se ele não existisse, ele achava que estava tão leve quanto o ar, mas não flutuava. Agora, após ter visto que aquilo não foi só uma coincidência, que realmente havia uma espécie de portal naquela árvore, ele queria saber para onde aquilo levava exatamente.

Foi ao quarto onde outrora havia matado uma criatura nojenta, abriu a porta devagar, com medo do que poderia ver dessa vez, mas não havia nada lá, o quarto estava silencioso e limpo como se ninguém jamais tivesse freqüentado aquele lugar. Jonh resolveu investigar tudo, para ver se era exatamente igual ao quarto dele, começou pela janela e mais uma vez viu algo bizarro.

Lá fora, na rua cinzenta, justamente igual à rua de Jonh, mas com um céu totalmente branco, uma cena se repetia, como um filme, avançando e retrocedendo. Susan era atropelada pelo carro de Jonh e voava como uma boneca de pano sendo jogada no ar por uma criança, caindo no chão com um barulho horrível de ossos quebrando. Jonh assistia à cena apavorado, não conseguia se mexer, não conseguia sequer piscar os olhos, aquilo era horrendo, a mulher que ele mais amava, atropelado por ele mesmo, várias vezes. A criatura de um olho só não era nada comparada aquilo. Num esforço sobrehumano, Jonh fechou a janela e se jogou na cama, fechando os olhos; com o acontecimento ainda repetindo em sua mente, ele levantou e foi ao banheiro lavar o rosto. A água não saía da torneira, Jonh girou ao máximo a válvula para ver se a água surgia, mas para sua surpresa não foi água que saiu, e sim um líquido vermelho, denso e escuro. Em pouco tempo a torneira estava cheia de sangue e Jonh apavorado saiu correndo do banheiro para a sala, mas ao chegar lá viu que o espelho estava sendo bloqueado por várias criaturas, todas bizarras e deformadas, cada uma com meninas lindas com asas de anjo do lado.

Jonh estava pertubado, não sabia o que fazer, a cada segundo que se passava ficava mais difícil de respirar, seu coração batia tão rápido que parecia que ia explodir e ele foi tomado por uma dor de cabeça intensa, acompanhada de um cheiro de ferrugem que parecia sair de dentro dele. As criaturas urravam coisas ininteligíveis que percorriam toda a sala de estar e se misturavam com os choros, risos e canções de crianças. O cheiro de podridão infestava o lugar, Jonh não aguentava mais, estava suando frio, com o corpo todo vermelho e se coçando, numa espécie de agonia.

- SUMAM DAQUI SEUS MALDITOS! SUMAM DAQUI! - gritava Jonh. Mas era inútil, seus gritos eram abafados pelos murmúrios nojentos dos monstros.

Então, como da outra vez, uma solução pareceu surgir na sua frente, em cima de uma mesinha. Jonh tinha avistado um cutelo, perto do retrato de Susan. Enlouquecido como estava, não pensou duas vezes e pegou o objeto. Fechou os olhos, gritou e saiu retalhando cada coisa que encontrava pela frente, as crianças, os monstros e as coisas indefiníveis, foi uma banho de sangue e carne, ao meio dos gritos, urros e choros. Ao abrir os olhos, Jonh não conseguia definir, onde estavam os pedaços de cada um, mas não ficou lá para ver aquela chacina, pulou para dentro do espelho, saindo da sala podre tingida de vermelho e mergulhando na escuridão sem fim.

Quando despertou, levantou assustado, olhando ao redor, e ainda verificando se não tinha alguma criatura que o tivesse perseguido. Sua roupa não estava mais suja de sangue, estava limpa, como antes de ele entrar na árvore. Ainda muito suado, ele foi para o seu carro, estacionado perto do parque e voltou para casa, não estava nada bem, seja lá onde ele estivesse, tinha matado gente (ou quase gente) brutalmente.

Abriu a porta de seu apartamento, o apartamento número 1945. Ao entrar, gritou pelo nome de Susan, estava preocupado com ela, depois do que vira na janela. Ela não respondia.

- Susan! Onde você está querida!?

Jonh foi andando devagar até o quarto, acompanhado de um silêncio pertubador que apenas não era absoluto devido aos sons longiquos da TV em seu quarto. Ao chegar lá, encontrou Susan deitada na cama, vendo televisão com os olhos vidrados.

- Susan? Você está bem?

Ela não respondia, continuava com os olhos bem abertos, não piscava, nem mexia, nem nada.

- SUSAN! OLHA PRA MIM! - gritou Jonh, balançando Susan pelos ombros. No entanto, ela não reagia, parecia sem vida, como se estivesse paralítica, cega, surda e muda.

Jonh a pegou e a levou nas costas, correu desesperado até o corredor do seu andar e apertou freneticamente o botão para chamar o elevador, rezando para que ninguém estivesse nele, queria chegar o mais depressa possível em seu carro. Para a sua sorte, nenhuma pessoa entrou no elevador e ele rapidamente chegou ao estacionamento. Em frente ao seu carro, se atrapalhou na hora de pegar a chave e a derrubou, ficou xingando alto; a pegou e depois de várias tentativas conseguiu abrir a porta do veículo. Jonh pôs Susan no banco traseiro e em seguida partiu para o hospital.


Após vários exames na emergência, nenhum médico conseguiu dar o diagnóstico para Susan, apenas disseram que ela estava em estado vegetativo, não enxergava, não ouvia, não falava e não se mexia. Jonh perdera o seu maior tesouro, de repente. Tudo o que ele mais amava nesse mundo, a pessoa por qual ele daria a vida, de certa forma havia morrido... Do nada.

Passaram-se vários dias após o incidente e Jonh visitava Susan todos os dias após o trabalho, no hospital. Ele começou a pensar que talvez a árvore tivesse alguma relação com isso, mesmo não fazendo muito sentido. Ainda lembrava claramente do que tinha visto antes de entrar no nó da árvore pela primeira vez: "Você realmente me ama Susan?", como se a árvore já soubesse da existência dos dois. Relembrou das cenas que viu da janela do seu pseudo quarto, aquilo era inesquecível. Ele realmente achava que a árvore tinha algo a ver com tudo isso e foi até lá para buscar uma resposta.


Estava novamente de frente àquela coisa estranha, pronto para descobrir o porquê de tudo o que aconteceu, mesmo sabendo que pode acabar encontrando coisas que o traumatizarão; na verdade ele já estava traumatizado depois de tudo... Jonh estava completamente confuso, não sabia para onde ir ou o que fazer, havia sido demitido por brigar com o chefe novamente e quase teve uma overdose de anti-depressivos, sem contar as noites de insônia em que sonhava com Susan sendo atropelada e em seguida sendo devorada pelos monstros disformes.

Não restava muito o que fazer senão buscar as respostas que ele queria, e no momento, parecia que só a árvore podia dar aquilo para ele. Parou de pensar em todos esses fatos e hipóteses e entrou novamente no nó da árvore. Levantou-se apoiando as mãos em uma cadeira próxima ao espelho e acabou derrubando-a.

- NÃO!!!

Tarde demais, a cadeira havia se chocado com o espelho e o derrubou. Os estilhaços do vidro voaram por toda a parte, fazendo pequenos cortes no braço direito de Jonh.

- Meu deus... Tem que haver outra saída, TEM QUE HAVER OUTRA SAÍDA!

Jonh correu desesperado por todo o cômodo. As janelas não abriam, as portas estavam todas trancadas e por mais que Jonh tentasse quebrar as janelas e arrombar as portas, aquilo não fazia efeito, ele estava preso em outra dimensão. Tentou nos mais absurdos lugares encontrar um portal ou algum buraco para sair dali, mas foi inútil. Não se sabe quantos dias se passaram, mas Jonh não aguentou muito tempo, logo enlouqueceu, com a falta de água e comida e com o silêncio pesado que pairava ali. Ele morreu naquele lugar inexistente para as outras pessoas, de fato, para os outros Jonh nunca existiu, nem mesmo para Susan, que agora com certeza desejaria estar morta. Ele queria encontrar a resposta na árvore, parece que encontrou, talvez a morte fosse a única solução viável para a vida dele.

"Tudo o que ele queria era saber se Susan também o amava, queria poder ver os sentimentos dela, transformar o abstrato no concreto, só isso o convenceria da verdade", esse era o desejo de Jonh, transformar o abstrato no concreto, no fim, a árvore apenas fez o que ele desejava, transformou os sentimentos de Susan em algo concreto, desde os sentimentos horríveis como a dor, o ódio e a tristeza até os sentimentos lindos como o amor, a esperança e o otimismo. Jonh teve a chance de ver todos eles, viu como era confuso o coração de Susan e destruiu todos os sentimentos dela há golpes de taco de baseball e com um cutelo.

Jonh acabou fazendo aquilo que nunca imaginou que fosse fazer um dia, assassinar Susan, mas ele finalmente encontrou a resposta...