"Viaje além de sua imaginação"

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Cão e a Cruz (Parte Final)

A cada semana a besta fazia novas vítimas e a população estava cada vez mais furiosa. Dona Joana já havia sido levada, em uma das noites, somente partes de seu corpo foram encontradas jogadas pela cidade, grande parte da rua das Alamedas foi tingida de vermelho. Ciro, irmão de Ronaldo, disse ter visto uma silhueta canina próxima à capela, ao ter olhado pelas frestas da janela, em uma noite de sexta-feira.

Em uma tarde de segunda, Ronaldo tinha resolvido procurar César, um grande conhecedor das lendas locais, também um contador de histórias, parece que sabia de muitas coisas a cerca dos lobos humanóides. O padre estava de frente à uma casa amarela, com os olhos semi cerrados devido ao calor, na frente do casebre, um senhor balançava-se para frente e para trás em sua cadeira de balanço, fumando cachimbo.

- Com licença, é aqui que mora o César? - Perguntou Ronaldo.

- O César? Sou eu - disse o velhote, tossindo. Ele tinha uma cara murcha e larga, o narigão enrugado se destacava em sua face de pele escura.

- Boa tarde senhor, eu sou Ronaldo, o padre da capela de São Miguel - disse estendendo a mão para que o velho a apertasse. Após o aperto de mão, César olhou atentamente nos olhos do padre.

- Eu conheço você, já assisti a uma missa sua, prega bem a palavra do Senhor.

- Obrigado.

- A cidade pensa que tu és a besta, está sabendo não é? Olham feio pra ti.

- Claro, mas o Senhor me protege de todos os males. Foi justamente por isso que vim te procurar, para saber mais sobre a besta.

- Ah, meu caro, posso lhe dizer bastante coisa, meu pai já encontrou um lobisomem quando era jovem, teve sorte de escapar com vida, ele passou a vida pesquisando sobre esta maldição, me passou tudo o que podia.

- Conte-me.

- Sente aí nesta cadeira - o velho aguardou um momento, esperando o padre se acomodar na outra cadeira de balanço. - Bem, vamos começar sobre como se deve deter a besta, uma das maneiras é colocando cera de vela usada em três missas de domingo, essa você já deve saber.

- Sei sim. Na verdade eu não quero matar a besta sabe, apenas quero me proteger.

- Entendo, realmente não cairia bem para um padre matar alguém. A maldição do Kumacanga ou lobisomem, faz com que a pessoa sinta um grande desejo de comer carne, comida salgada e traz uma sede incontrolável, a criatura precisa se alimentar de sangue para viver, se encarrega de obtê-lo quando está transformado. Diz a lenda que quando uma mulher tem sete filhos homens, o sétimo será um lobisomem, ou então quando a mulher se amanceba com um padre. A maldição se desenvolve quando a criança completa treze anos de idade.

Ele apenas havia confirmado o que já sabia, “treze anos de idade”, era horrível saber daquilo, sentia o olhar canino quando fechava os olhos, era aterrorizante, aquilo o atormentava há alguns anos. Sete filhos, a carne, o sangue, o padre, tudo agora estava confirmado, a lenda não era apenas uma lenda, de fato existia e estava mais perto de Ronaldo do que qualquer um poderia imaginar.

- Já ouvi o suficiente, vou embora, muito obrigado César - disse Ronaldo levantando-se.

O velho não disse nada, apenas ficou olhando para o padre fixamente, franzindo seu cenho, a fumaça do cachimbo cobrindo-lhe a face.

A sexta-feira havia chegado novamente, a maldita sexta. O povo da cidade estava decidido dessa vez, em invadir a igreja, para pegar Ronaldo no flagra, para acharem a besta. Perto do anoitecer, os cidadãos brandiam suas tochas, pás e enxadas rumo à capela, gritavam indignados, “Isto vai ter um fim esta noite!”,” A besta não irá mais nos perturbar!”,”Não haverá vítimas em nossa cidade esta noite!”. Chegando na porta da capela, o mutirão arrombou o portão e adentrou no local, o altar alaranjado pela luz das tochas, o silêncio reinava ali, mesmo com o grito de todas aquelas pessoas, era um cenário sombrio, todos haviam se calado, agora vasculhavam o lugar em busca de Ronaldo.

Ao chegarem no quartinho em que dormiam os irmãos, encontraram apenas José, pálido e ofegando em sua cama, estava muito assustado com a invasão repentina daquelas pessoas na casa do Senhor.

- José! Por Deus, onde está o seu irmão?

- Eu não sei.

- Ora, não precisa mentir, estamos aqui para o seu bem, para te salvar das garras da besta, diga para nós.

- Estou falando a verdade! Não sei!

Todos os que estavam no quarto olhavam um para o outro, incrédulos, iluminados somente por suas tochas. Na visão de José os rostos de todos demonstravam que estavam sedentos por sangue, o ódio pela besta havia contaminado todas aquelas pessoas com um instinto assassino.

- Vamos embora, ele não está aqui, pobrezinho do irmão dele, abandonado neste quartinho escuro... Venha conosco garoto.

- Não, eu não quero. Aqui estou mais seguro, na casa do Senhor.

- Que seja. Hoje iremos achar a fera, custe o que custar - as pessoas agora evacuavam a igreja.

Nas ruas desertas da cidade, podia-se ouvir apenas o vento e os passos das pessoas revoltadas que vagavam pela cidade em busca do lobisomem. Durante a caminhada, um dos homens disse ter visto uma silhueta correndo para o matagal, logo os caçadores adiantaram-se, aquela era a chance de ouro. Eles se separaram prontos para armar uma armadilha para a besta, cercariam o bicho em um círculo, o deixaria sem saída.

Não tardou para que encontrassem o homem lobo, agora a criatura rosnava para os homens armados que o flanqueava, sentia-se ameaçado, de fato estava muito encrencado. A saliva deslizava por sua enorme boca canina, repleta de dentes afiados; os pêlos escuros eram escassos em algumas regiões do corpo e também era mal distribuído; as orelhas pontudas lembravam chifres e os olhos amarelados eram intimidadores. O monstro estava sedento por sangue e carne humana, seus instintos o dominaram, o cão agora pulava em cima de um dos caçadores com extrema rapidez, o homem nada pôde fazer, estava sendo devorado, o sangue jorrava por todos os lados, tornando as plantas antes azuladas com a luz do luar, vermelhas, um vermelho escuro e denso; logo os gritos do homem cessaram, quando a besta o mordeu na jugular. Os outros que observavam a cena chocados, agora não viam outra solução senão atirar no bicho e assim fizeram. O lobisomem fora fuzilado, perfurado pelas balas sagradas, untadas com as velas da Igreja de São Miguel, em pouco tempo caiu duro na grama, os olhos perdendo a cor amarelada, a língua pendendo para fora da boca, a besta foi abatida.

Ronaldo notando a confusão que vinha lá de cima, saiu de seu esconderijo, que ficava próximo à sua cama, um pequeno porão que havia feito para se proteger da besta na noite. Reunindo toda a sua coragem, levantou o alçapão lentamente, olhando para todo o ambiente, seu irmão havia sumido. Foi andando até a cozinha, do lado de fora era possível ouvir gritos, mas não eram gritos de horror e sim de comemoração. Chegando na praça da cidade, encontrou os cidadãos reunidos ao redor de um poste, em que no alto uma criatura lupina pendia, balançando de um lado para o outro, presa com uma corda grossa no pescoço, o sangue da besta ainda escorria por seu corpo, pingando e criando uma poça de sangue abaixo dela.

O padre foi tomado por uma sensação horrível, caiu de joelhos e começou a chorar, isto fez com que todos se calassem e olhassem para trás. Ao verem Ronaldo ficaram perplexos, pensavam que ele era a fera, mas se ele estava ali ajoelhado, quem era a maldita criatura? Só o amanhecer os daria a resposta.

Todos foram para suas casas, alguns tentavam consolar Ronaldo, mesmo não sabendo o motivo porque tanto chorava, devia estar feliz pelo fim da besta. O padre ficou ali, olhando para a pobre figura do monstro, pendendo tristemente no poste, durante toda a madrugada.

Quando os raios de sol começavam a surgir no horizonte, a figura de José, o sétimo filho de Dona Chica, filho do antigo padre da cidade, aparecia onde outrora estava a besta. O querido e frágil irmão de Ronaldo havia completado treze anos naquele dia.



FIM.

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