"Viaje além de sua imaginação"

quarta-feira, 10 de março de 2010

Aracnídea (Parte 2)

Todos pareciam bastantes tranquilos enquanto comiam as tradicionais panquecas de minha mãe, estava começando a achar que apenas eu estava paranóico e que aquele dia certamente seria pior do que o anterior.

A campainha havia tocado, Tio Les tinha chegado. Minha mãe pediu para que meu irmão fosse abrir a porta, ele por ser mais velho sempre era o mais cobrado. Aborrecido, ele foi e eu o segui até a porta que levava ao hall de entrada.

Tio Les nunca mudou, aquele cabelo loiro extremamente arrumado, que mais parecia uma peruca, estava parcialmente coberto por uma boina marrom. Ele nunca tirava o charuto da boca, quando deixava de fumar um, logo pegava outro, mesmo que não fosse tragá-lo. Sorriu para meu irmão com aqueles dentes amarelados, um sorriso nada sincero, que estava sendo devidamente retribuído.

- Olá meu jovem! - cumprimentava-me.

- Oi tio Les.

- Les Paul meu jovem, Les Paul.

Provavelmente por estar cansado de tanto disfarçar, deixou a mala perto da entrada da casa e se dirigiu logo à cozinha.

- Hmm, esse cheiro não me engana! São as panquecas da Laura! - Gordo do jeito que era, dava para entender como ele tinha um olfato tão apurado.

Pude ouvir as vozes na cozinha, meus pais o cumprimentando. Acho que apenas eu e meu irmão entendíamos que aquele gordo nos visitava apenas para suprir a sua necessidade de encher a barriga que ele tratava com tanto carinho. Apesar de tudo, o tio Les era um homem bem humorado, sabia como nos fazer rir, todas as vezes que nos via trazia novas piadas e agora já estava contando-as na cozinha, com um pouco de dificuldade, pois sua boca já estava saturada de tanta panqueca.

- ... E adivinhem só! O homem havia comido todo o cocô pensando que era chocolate! - A risada alta dele ecoava por todo o cômodo. Meus pais riam juntos, mas eu não vi muita graça na piada, o tio Paul já tinha contado melhores.

Após ter comido quase todas panquecas, por pouco não devorando a minha também, o tio Les estava na difícil tarefa de levantar o traseiro e manter-se de pé. Depois desse feito incrível, ele voltou ao hall de entrada, para buscar as malas.

- Laura! Onde eu vou dormir!? - Gritava o tio Les, lá do hall.

- Suba as escadas e entre no último quarto do corredor!

O último quarto do corredor... O mesmo em que eu tinha visto uma pessoa entrando na minha primeira e maldita noite, não faria questão de contar uma coisa dessas para o tio Paul, até por que ele não acreditaria. Les com certeza não iria dormir bem naquela noite e para a infelicidade dele os dias só tinham cerca de 12 horas de claridade.

Meu tio já tinha guardado as coisas no quarto e agora descia com seus passos pesados, perguntando se o almoço iria demorar ou não para sair. Subi até meu quarto para pegar uns brinquedos, estes estavam guardados num grande baú de madeira. Quando o abri, fiquei procurando por meu boneco favorito. O quarto estava bastante silencioso, qualquer ruído era perceptível.

A porta havia fechado e eu ouvi passos leves se dirigindo em minha direção.

- Mãe? A senhora viu aquele boneco que eu gosto? - Perguntei, estava concentrado no que estava fazendo.

Vendo que ela não tinha respondido, me dei conta de como estava frio ali.

- Mamãe?

Criando coragem para ver o que me esperava, lentamente me curvei, tinha certeza de alguém me observava ali parado, sentia aquela presença fortemente. Não havia ninguém lá, meus pêlos estavam arrepiados e meus pés dormentes. Corri em direção à porta, não estava mais interessado em brinquedo algum, mas parece que eles estavam interessados em mim, uma mão de palhaço saía do baú, mexendo os seus três dedos vermelhos, em seguida aparecia a face horrenda do brinquedo, aquela maquiagem negra ao redor dos olhos infantis e o sorriso macabramente grande. Agora o pequeno palhaço descia com trabalho do grande baú, parecia difícil para ele ficar de pé; após manter o equilíbrio, ele veio andando até mim, bem devagar, caminhava como um bebê aprendendo a andar, as pernas de algodão, tortas.

Eu tentava abrir a porta, mas parecia que ela estava emperrada, como se alguém estivesse segurando a maçaneta do lado de fora, o boneco estava cada vez mais próximo de mim, sempre sorrindo. Nunca gostei de palhaços, mas os pais não entendem os temores dos filhos, haviam comprado este boneco para mim, como se toda criança gostasse de palhaço. Não pensei em outra opção além de pedir socorro.

- Mãe! Socorro! Socorro!

Não sei se ela estava me ouvindo, mas eu gritava o mais alto que podia, enquanto o palhacinho com cabeça de porcelana, agora rastejando, vinha em minha direção. Pude ouvir minha mãe e meu pai agora do outro lado da porta, tentando abrí-la, enquanto gritavam desesperados.

O palhaço estava quase encostando as mãos em mim.

- Não! Sai daqui! Não! Não! Sai!

Eu suava como se tivesse dado duas voltas no quarteirão. Por reflexo chutei com toda a força a cabeça do boneco, esta explodiu, como se fosse uma cabeça humana, enchendo o quarto de massa cefálica e um odor horrível de morte, o pequeno palhaço agora agonizava no chão, enquanto saía um líquido vermelho denso e gelatinoso de onde outrora estava sua cabeça.

Minha mãe conseguiu abrir a porta, me encontrou chorando no chão em frente ao palhaço.

- Filho o que houve!? O que foi isso!? - Vendo que eu não respondia, tentou chamar minha atenção mais uma vez - Filho!

Agora eu finalmente tinha escutando o que ela estava dizendo. O quarto agora estava limpo, nenhum sinal de sangue ou tripas, apenas os pequenos fragmentos de porcelana espalhados pelo chão.

- Vamos! Conte pra mamãe!

- O-o palhaço... Tentou me atacar.

- Quê? Filho... Isso é coisa da sua imaginação, ele era apenas um boneco, como ia poder se mover?

- Não! Não é! E- ele se moveu sim! Eu vi! Ten- tentou agarrar minhas pernas!

- Calma amorzinho, dá um abraço aqui na mamãe.

Com isso pude me acalmar, nada como um abraço materno, nos sentimos seguro com todo aquele calor agradável.

- Mamãe, eu juro que é verdade, ele se moveu.

- Tudo bem filho, tudo bem. Agora vamos lá embaixo ajudar a mamãe a limpar o quartinho da escada - com isso desvencilhou-se do meu abraço e me levantou pelas mãos.

Limpar aquele pequeno cômodo seria uma tarefa difícil, uma camada grossa de poeira cobria todos os objetos ali presentes como se fosse um enorme lençol. Passado pouco tempo eu já estava começando a espirrar, e minha mãe havia pedido para eu sair dali. Durante o resto da tarde brinquei com meu irmão no jardim.

Já começava a escurecer, a lua cheia já estava no céu, pedindo ao sol para ir embora de vez. Mamãe agora me chamava para jantar, estava bem cedo, seis horas da noite, mas na companhia do tio Les, que cobrava a janta mesmo depois de ter acabado de comer o almoço, ela não aguentaria ouvir ele pedindo a janta por muito tempo.

- Hmm! Delícia! Posso sentir o cheiro do molho da macarronada! - Tio Les comia com o nariz também, como um aperitivo para o que viria goela abaixo depois.

Com todos sentados em suas devidas cadeiras, mamãe servia a macarronada e a salada na mesa de jantar, tio Paul avançava na macarronada como um gavião em pleno mergulho para agarrar sua presa.

Fiquei até com medo de estender o talher para pegar minha parte, o olhar insaciável do meu tio demonstrava que ele poderia enfiar o garfo na mão de quem tentasse. Então todos esperaram até que ele fizesse a típica montanha em seu prato.

- E então Paul, como andam os negócios da família? - perguntava meu pai, enquanto tentava fisgar uma pequena almôndega.

- Ah, aquela joça? Está indo de mal a pior se quer saber! Hoje em dia ninguém está mais querendo saber de produtos naturais!

- Uma pena... - disse mamãe, concentrada em pegar uma grande folha de alface.

- Uma pena é? Pena quem tem é pássaro! Vamos ter que vender outras coisas se quisermos nos manter.


Para variar outra fala idiota do titio, acho que o cerébro dele havia descido para o traseiro. Aquela conversa sobre negócios não me animava nem um pouco, torci para que aquele jantar em família acabasse logo, para que eu pudesse ir dormir.

O que eu mais desejava no momento era estar de volta às aulas, para passar o máximo de tempo possível longe daquela casa. A primeira noite tinha sido uma tortura, em plena luz do dia, embora meu quarto estivesse sempre escuro, brinquedos me atacavam. O que eu podia esperar de mais uma noite? Uma criança normal estaria traumatizada, mas felizmente, eu não era uma criança normal.

Tio Les já estava percebendo que se comesse um pouco mais iria explodir, então decidiu parar. Minha mãe agora levava os pratos à pia, sorte dela que o titio só usara um prato em todas as suas repetições. Agora ele levantava, com a dificuldade de sempre e claro, fazendo a cadeira ranger.

- Jantares sempre me deixam sonolento! Vou para meu quarto - avisou Les.

Uma súbita vontade de fazer o número dois me abatia naquele momento, corri para o banheiro do andar de baixo. Enquanto estive ali, sob o silêncio, pude ouvir ao longe as conversas que vinham da cozinha atravessando as paredes. Papai e mamãe comentavam a meu respeito, "Você não acha que tem algo de errado com essa casa?" opinou meu pai. Certamente tinha e no momento só eu sabia, por enquanto.

Não sei exatamente quanto tempo passei ali, mas certamente foi muito. Voltei a cozinha para dar boa noite à mamãe, que agora estava cortando carne na tábua de madeira, estranhei, por que estava fazendo aquilo? Ela sempre ia para o quarto dormir, logo após a janta.

- Mamãe? Está cortando carne?

Ela não respondeu.

- Mamãe, a senhora está bem? - Me aproximei dela pela lateral.

Realmente ela estava cortando carne, mas não era para preparar uma refeição. Ela batia com força a faca em cada dedo, duas vezes, para quebrar o osso, primeiro vinha um som abafado, depois um baque, quando a faca atingia a tábua, ia arrancando-os um a um. Jogou os cinco dedos dentro de uma tigela e virou-se para mim rapidamente, estendendo-a , agora preenchida com um cereal de dedos, leite, sangue, dedão, anular, mindinho...

- Aceita um cereal?

Agora via aquele rosto que reconhecia tão bem, a maquiagem escura ao redor dos olhos, o batom forte, a pele pálida, era a bailarina que outrora estava em um corpo de aranha. Eu tinha caído no chão com o susto, não conseguia gritar, havia perdido a voz, entrei em pânico, não conseguia raciocinar direito.

Estalos podiam ser ouvidos da garganta da mulher, a cabeça maquiada agora parecia estar fora do lugar, se entortava de uma maneira estranha. O corpo aracnídeo da bailarina havia saído pela garganta de seu fantoche humanóide, que caía no chão,com um som de carne após levar uma martelada. A nojenta bailarina aranha agora andava sem rumo pela cozinha, comendo os dedos que encontrava no caminho.

Finalmente consegui me levantar e fui embora correndo o mais rápido que pude.

Chegando em meu quarto, tranquei a porta e me joguei na cama, pegando o lençol para me cobrir o mais rápido possível. Dei uma rápida olhada para a janela, e ela já estava lá, a aranha, parada e inexpressível, a observar o quarto. Como eu gostaria de estar no lugar do meu irmão agora, que dormia tranquilamente sem nenhuma assombração para pertubá-lo.

Fechei os olhos com força, me esforçando para não abrí-los em momento algum. Agora a aranha passeava sobre as bordas da minha cama, fixando aquele olhar mórbido em mim, pulou em meu rosto.

- AAAAAAHHH!

Acordei daquele pesadelo com um grito que se prolongava além dos sonhos, alguém estava gritando pelo corredor em pleno início da manhã, reconheci os berros, era o tio Les. A gritaria agora estava na sala, pelo visto ele não teve uma boa noite de sono, como eu suspeitava.

Mamãe, papai, eu e meu irmão, fomos ao hall de entrada para ver o que aconteceu. Tio Paul berrava, enquanto corria sem rumo pela sala.

- Belo casarão esse que vocês arranjaram hein! Que diabos! Que diabos! Eu vou embora daqui agora!

- Calma Paul! O que aconteceu!? - Perguntou mamãe.

- Ora o que aconteceu! Primeiro uma menina de vestido branco sai de dentro do guarda roupa no meio da madrugada! Depois acordo embaixo da cama! Pra mim já chega!

Sem dizer mais nada, meu tio foi ao quarto em que dormira e depois voltou com as malas prontas. Quase caiu da escada ao descer, eu nunca tinha visto o rosto dele tão pálido.

- Passar bem Laura.

Agora ele já estava lá fora ligando o carro e fazendo o que eu também gostaria de ter feito, ir embora daquela casa.

Mamãe e papai agora olhavam para mim com outro olhar, parece que finalmente entenderam que eu estava dizendo a verdade todo aquele tempo.

- Filhinho, desculpe não ter acreditado em você - adiantou-se mamãe.

- Laura, acho melhor irmos embora daqui amanhã, estou começando a achar que as coisas aqui não estão nada bem - concluiu papai.

Finalmente uma idéia sensata de ambos, em pouco tempo eu estaria fora daquela maldita casa.



Continua...

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